Outro dia, na mesa do bar, o rumo da prosa acabou indo para a velha MPM, lugar que todo mundo que teve o privilégio de trabalhar morre de saudade, uma agência que conseguiu reunir alguns dos melhores caracteres que a propaganda teve em toda sua história. Falo de chefes, gerentes e dos próprios donos, pessoas quer chegam a ser folclóricas no respeito pelos colegas e – em muitos casos – na generosidade. Eu não trabalhei na MPM, mas conheci vários de seus antigos profissionais, cuja relação preencheria esta página. Nenhum deles escreveu livro de autoajuda nem vive de dar palestras sobre espírito de equipe, talvez por isso mesmo tenham criado um ambiente de trabalho insuperável. É claro, como em todos os casos parecidos, pode ter havido uma sacanagem, uma inveja, uma puxada de tapete, afinal era uma agência de propaganda não o Jardim do Éden. Mas na média, numa empresa que ao longo de sua vida deve ter dado emprego a alguns milhares de profissionais, a MPM tem um espaço reservado entre os lugares de sonho para trabalhar.

Como sempre, tudo começa de cima, e os três donos, Mafuz, Petrôneo e Macedo são patrões queridos até hoje e é comum alguém se lembrar com saudade e gratidão alguma passagem que revela o tino comercial, a capacidade de fazer negócios e de tratar as pessoas com empatia. Uma das histórias que eu mais gosto é uma parábola dessa característica da agência. Quando a MPM foi fundada, em Porto Alegre, a primeira funcionária contratada foi a moça do chimarrão, que no resto do Brasil também é conhecida como a moça do café e hoje foi devidamente substituída pela Nespresso, para se ver como involuímos. A funcionária se chamava Filomena e, além da água para a erva, ajudava em tudo, pois a agência inteira cabia numa sala, onde donos, poucos funcionários e algumas máquinas de escrever dividiam espaço com pranchetas de segunda mão, alguns parcos aparelhos telefônicos e uma magnífica máquina de fax, maravilha tecnológica.

Com o tempo, as coisas foram mudando e a MPM se tornou a maior agência do Brasil, com a unidade de Porto Alegre instalada num prédio especialmente construído, um palácio, quase um ponto turístico. De uma de suas janelas, o redator Luis Fernando Veríssimo via os navios saindo para o mar do porto do Guaíba. A única que mudou, mas para pior, foi a Filomena, pois o tempo de casa lhe dava uma certa sensação de propriedade. Também começou a ficar um tanto preguiçosa e meio inconveniente, com um vocabulário digno das piores rodas de tavolagem. E começou a criar regras para facilitar sua vida. Começou por diminuir as rodadas de café e, aos poucos, foi restringindo a liberalidade, terminando por servir apenas duas vezes ao dia, às 10 da manhã e às 3 da tarde. Quem quisesse em outras horas, que fosse ao bolicho, ora porra. Era um despautério, mas ninguém tinha coragem de mexer com a Filomena, um pouco por respeito, um pouco por medo. E a qualidade do serviço foi caindo tanto que um dia ela decretou que não traria mais adoçante na bandeja, porque isso era coisa de viado.

Muita gente teve de trazer adoçante de casa. Até que um dia a Companhia de Petróleo Ipiranga marcou uma reunião às 11 horas da manhã, na agência. E uma comissão formada pelo atendimento foi procurar o Mafuz para ver se conseguia que o café fosse servido, embora fora do horário. Em resumo, o pessoal foi pedir ao Mafuz que usasse sua influência junto a Filomena, se é que ele tinha alguma. Mafuz, solenemente, chamou a moça na sala da presidência e trancou-se com ela, enquanto o pessoal ficou do lado de fora esperando o resultado. Lá dentro o presidente da casa iniciou um discurso lembrando a importância de fazer uma exceção no horário do café, uma vez que toda a prosperidade da empresa se devia à confiança inicial da Ipiranga, que era um cliente pioneiro, que merecia este gesto de gratidão e reconhecimento, e por aí afora. Filomena nem esperou o fim da história e interrompeu mimosamente: “Se é assim, Mafuz, por que você não dá o cu para eles?” E foi embora. Mafuz foi até a sala de espera e declarou à equipe: “Pessoal, a reunião foi terrível!” E a Ipiranga ficou sem café.

Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)

Leia mais
A era da autenticidade em tempos de Cocielo
Autocrítica de aluguel