Diretora de cena da Saigon conta os detalhes do filme 'O código Dove', que apresentou imagens de mulheres com padrões estereotipados de beleza geradas por IA
Uma campanha global de Dove criada pela agência Soko traz como destaque o filme 'O código Dove', que apresenta imagens de mulheres com padrões estereotipados de beleza geradas por ferramentas de inteligência artificial. No entanto, no momento em que é solicitado à IA criar fotos seguindo o repertório de imagens da Dove surgem representações de mulheres com belezas reais e inclusivas.
O filme foi produzido pela Saigon, com direção de Juliana Curi e uma equipe formada por mulheres latinas. "Com uma abordagem interseccional, montamos uma equipe de talentos femininos, reunindo, por exemplo, mulheres LGBTQIAP+ e profissionais negras em cargos de liderança, promovendo uma rica construção de subjetividades", diz a diretora. "O resultado é um filme autêntico e sensível, mesmo quando os retratos são, em sua maioria, imagens geradas por IA", completa.
Na entrevista a seguir, Juliana Curi conta os desafios que tiveram de enfrentar durante a produção da campanha, a integração com a inteligência artificial, inclusão, entre outros assuntos.
Qual foi o maior desafio que você encontrou ao trabalhar com imagens geradas por IA para esta campanha, e como você superou esse desafio para garantir que o filme mantivesse sua autenticidade e sensibilidade?
O principal desafio ao integrar a inteligência artificial nesta campanha foi superar uma primeira tendência que eu tinha de criticar essa tecnologia. A IA, apesar de carregar questões éticas urgentes que pedem regulações – particularmente em relação à representatividade feminina –, é fundamentalmente um reflexo da humanidade. Ela aprende com base nas noções de beleza que foram ensinadas por séculos de representações tóxicas. Apesar de estarmos comprometidos em revelar dados perturbadores, que demonstrassem como anos de opressão e padrões estéticos irreais moldaram o repertório imagético que hoje nutre a inteligência artificial, também estávamos determinados a mostrar como, ao longo da história, as mulheres conseguiram plantar sementes de mudança que prosperaram. Aliadas a marcas como Dove, conseguimos, juntas, desenvolver um novo conjunto de imagens que representam uma beleza real, positiva e saudável. Ao acionar essa nova visão na inteligência artificial por meio do código Dove, pudemos perceber e celebrar essa significativa conquista. Então, nosso desafio estava em denunciar e conscientizar, mas também em poder celebrar as conquistas irreversíveis alcançadas ao longo dos anos pelos movimentos feministas e por marcas aliadas como a Dove.
Como a diversidade e a inclusão da equipe de produção, especialmente a presença de mulheres LGBTQIAPN+ e profissionais negras em cargos de liderança, influenciaram o processo criativo e o resultado final do filme?
Incluir diversas perspectivas no processo criativo não é apenas eticamente correto, é também extremamente eficaz. Isso leva a resultados mais inovadores, criativos, ricos e representativos. Na minha prática, considero a formação de uma equipe com múltiplos olhares tão importante quanto o resultado final em si. Nesta campanha, contamos com o apoio incondicional da Soko e da Dove para formar o time mais plural possível. Fica evidente o impacto dessa escolha na conexão que estabelecemos com nosso público. A inclusão, especialmente a representação significativa de mulheres LGBTQIAPN+ e de profissionais negros em posições de liderança, onde as subjetividades são construídas, foi crucial para esse impacto.
Que impacto você espera que 'O código Dove' tenha na indústria da beleza e da publicidade, especialmente em termos de promover a inclusão e desafiar os padrões estereotipados de beleza?
Estamos diante de uma campanha de real impacto social que aborda um tema muito urgente para as futuras gerações. Estima-se que 90% do conteúdo digital será produzido por inteligência artificial nos próximos anos. O problema é significativo: basta você dar uma busca por imagens de mulheres em plataformas de IA para perceber que os padrões de beleza estão mais inatingíveis do que nunca. Não é de surpreender que uma em cada três garotas diga que mudaria sua aparência por causa da beleza artificial que veem online. O lançamento desta campanha representa um marco histórico no debate sobre diversidade e inclusão na publicidade.
Quais escolhas de direção e produção ajudaram a compor a campanha de acordo com o conceito criativo e quais foram os desafios?
O desenvolvimento da campanha com a Soko foi uma jornada incrível. Meu trabalho é todo voltado para narrativas de impacto social e percebo que, muitas vezes, ainda há uma resistência na nossa indústria em reconhecer que craft e impacto sociocultural podem coexistir. Eu gosto de mostrar nos meus filmes que projetos de impacto social merecem, mais do que qualquer outro, um alto nível de refinamento técnico, valor de produção e cinematográfico. Essas ferramentas são valiosas para conectar o público e levar essas mensagens importantes que nos ajudam a seguir evoluindo como sociedade. Quando o projeto foi apresentado pra mim, vi que o Felipe Simi e toda a equipe da Soko compartilhavam desse mesmo desejo, e a sinergia foi instantânea. Nosso maior desafio acredito que foi tecer uma mensagem 100% real com um alto nível de craft e poder estético, capaz de envolver o espectador nessa jornada. Portanto, nosso principal desafio era manter um equilíbrio entre esses dois aspectos.
Definimos como parâmetro inicial que a campanha deveria ser abordada com a autenticidade de um documentário. Durante quatro meses, trabalhamos em parceria com a The Mill nos Estados Unidos para criar imagens usando inteligência artificial. Esse processo foi inteiramente fiel aos prompts que inserimos e isso estabeleceu a credibilidade jornalística de nossa abordagem desde o início, um pilar fundamental do meu trabalho também. Com essa fundação estabelecida, passamos a realçar a narrativa com boas escolhas de elenco, uma trilha sonora marcante, fotografia que dialoga com as emoções e uma edição que trouxeram o craft, mas sem nunca perder o protagonismo da verdade por trás da mensagem dessa campanha.
Em sua opinião, qual é a importância de integrar iniciativas de inclusão social, como o Euetu Lab e o Instituto Criar, em projetos de grande visibilidade como esse, e como isso pode influenciar a indústria audiovisual brasileira no longo prazo?
Sou uma pessoa que acredita profundamente nos movimentos coletivos e sociais, ou, como são conhecidos nos Estados Unidos, Grassroots Movements. Para mim, é essencial que nossa indústria vincule suas produções a políticas afirmativas de educação. Foi com esse desejo que cofundei, em 2021, o Euetu Lab. O Lab é um projeto de mentoria que promove o desenvolvimento profissional de realizadores de comunidades periféricas e regiões de vulnerabilidade socioeconômica. Ele nos faz refletir: meu progresso pessoal está a serviço do progresso da minha comunidade?
O sucesso do projeto foi evidente quando a primeira turma se formou em 2022, com seis jovens integrados ao mercado de trabalho e emergindo como futuras lideranças. Este mês, formamos uma nova turma com mais seis jovens talentosos. Dessa forma, cada projeto que desenvolvo ativa uma engrenagem importante por trás. Sinto que, se cada um de nós adotar essa postura, poderemos, de fato, gerar uma mudança estrutural no mercado. O Euetu Lab foi tão bem-sucedido que estamos ampliando o projeto e em breve anunciaremos novidades sobre sua atuação e expansão.