O digital está em todos os lugares, transformando radicalmente todos os segmentos da economia. A cada dia, a crescente democratização da tecnologia fomenta o nascimento de novos negócios – como as startups que, com poucos recursos, conseguem criar produtos e serviços inovadores atendendo às necessidades dos consumidores de uma forma muito veloz. Isso obriga grandes empresas a mudar suas operações para continuarem vivas no mercado já que, apesar de ter muito mais recursos que essas jovens organizações, elas seguem seu funcionamento clássico com processos que têm por objetivo criar previsibilidade e evitar riscos ao invés de inovar e produzir com rapidez. E a barreira está justamente nesse formato que não funciona mais.

Hoje, elas precisam fazer uso de tecnologias que permitam ter velocidade nos ciclos de vida dos produtos – desde a ideia inicial até as mãos do consumidor – e, sobretudo, ter times de profissionais capacitados a pensar no digital e desenvolver ofertas que tragam valor aos clientes. A chave para isso está na transformação digital que, não à toa, é uma preocupação para a maioria dos C-Levels no mundo todo.

Na tentativa de realizar essas mudanças necessárias, as empresas têm experimentado mimetizar práticas das startups aderindo, por exemplo, ao movimento Lean Startup que, ano a ano, ganha força no mercado. Criado por Eric Ries no livro de mesmo nome (The Lean Startup, 2011), esse termo se refere à forma de operação dos novos negócios digitais de modo a minimizar os investimentos requeridos e acelerar a entrega de valor para o cliente, por meio de ciclos curtos de validação de hipóteses – o que popularizou o termo MVP (Minimum Viable Product). Apesar de tocar em conceitos como “innovation accounting” – que é o uso de métricas específicas para avaliar o progresso de uma inovação – o grande foco da Lean Startup está no ciclo de desenvolvimento de produtos, o que Eric Ries inteligentemente chama de “Ciclo de Desenvolvimento de Clientes”. O Lean é apresentado como a filosofia por trás disso.

Realmente, o Lean tem um ferramental poderoso para atingir esses objetivos de otimização do ciclo de desenvolvimento de produtos (ou clientes, se preferir), mas não é apenas isso. É uma filosofia de gestão com aplicabilidade muito mais ampla e capacidade de transformar empresas profundamente, inclusive, para atender a esse novo contexto digital. O viés de Eric Ries apresenta o conceito de maneira muito simplista quando privilegia apenas a dimensão do produto.

Ele traz boas soluções para pequenas empresas, mas que são insuficientes para entregar resultados satisfatórios a uma grande corporação que necessita da mudança e articulação efetiva de todas as áreas – como negócios, marketing, jurídico e TI – em larga escala, para atingir a rapidez que deseja. A mudança cultural almejada por aqueles que buscam inspiração na Lean Startup acaba, em geral, restrita a alguns silos da corporação – o que é antagônico aos princípios verdadeiramente Lean.

E, assim como na Lean Startup, multiplicam-se outras visões estreitas que geram mal-entendidos e um grande desperdício de potencial. Percebendo esse fato, em um momento em que o Lean pode ser o vetor de transformação das empresas rumo ao novo mercado, é necessário trazer alguns esclarecimentos.

Vamos a eles.

Livre-se da ideia do enxuto
O primeiro ponto que deve ser abordado em busca de clareza é que, apesar do significado do nome – e da tradução literal do inglês -, Lean não é uma metodologia para deixar a companhia “mais enxuta”, por meio do corte de custos e diminuição do overhead. O equívoco surge desde a origem do termo “Produção Enxuta” (ou Lean Manufacturing), criado por James P. Womack, Daniel T. Jones e Daniel Roos, no livro The Machine that Changed the World, de 1990, para definir o Sistema de Produção da Toyota (Toyota Production System – TPS). Na obra – que apresenta o Lean como a maior revolução gerada na indústria, desde a criação do sistema de produção em massa no início do século XX -, são descritas as práticas usadas pela empresa japonesa para aprimorar a sua linha de montagem, destacando a importância da redução do desperdício.

Porém, esse é apenas um dos princípios que regem o Lean. Essa filosofia orienta a identificar o que é valor para o cliente e como entregá-lo no momento em que ele precisa, com alta qualidade, de forma constante e com a maior rapidez possível, além de otimizar o fluxo de valor como um todo. E para que isso seja realizado, conduz a empresa em busca da melhoria contínua não apenas na cadeia de produção, mas em todos os seus processos e campos de atuação. Apesar desses princípios todos serem descritos no livro, o termo “Lean”, criado com a obra, acabou “pegando”, e muitas vezes o seu significado literal acaba se sobrepondo ao profundo significado dos princípios a que Womack, Jones e Roos se referiam. A “escassez” faz parte do jogo, mas apenas trabalhar com recursos escassos não torna ninguém Lean.

Para manufatura e para todos os outros setores
Outra confusão comum em função da origem do termo é a associação equivocada dele à uma filosofia que atende apenas à manufatura. Muitas empresas resistem em buscar no Lean uma solução para realizar a transformação dos seus modelos de negócio, por considerar que ele só pode ser aplicado em indústrias que trabalham com linhas de produção. Na realidade, o Lean tem o potencial de alavancar de forma surpreendente os resultados financeiros, de satisfação do consumidor e velocidade de operação em qualquer tipo de companhia. Devido à sua origem e às primeiras obras, que continuam clássicos depois de quase 30 anos, os exemplos mais encontrados na literatura são de fato referentes à manufatura, ilustrando situações quase sempre ancoradas no mundo físico. Fica difícil para o leitor que vive no mundo digital – ou em qualquer ramo da indústria do conhecimento – encontrar paralelos úteis de forma imediata. Felizmente essa realidade está começando a mudar.

Lean não é sobre otimizar áreas específicas de uma empresa
Também na linha reducionista do termo estão a já citada metodologia Lean Startup, além do Lean User Experience (Lean UX), Lean IT, Lean Software Development e Lean Six Sigma, entre outras que empregam alguns dos princípios da mentalidade Lean em áreas específicas.

O Lean UX usa as premissas ligadas à elaboração de ciclos curtos de teste de hipóteses para criar experiências dos usuários de forma rápida antes de fazer grandes apostas. Seguindo a mesma lógica, o Lean Software Development propõe a eliminação de desperdício no desenvolvimento de softwares com entregas velozes e constantes. Já o Lean IT destina-se à utilização das ferramentas para melhorar as operações e serviços ligados à área de tecnologia de informação de uma empresa e, assim, reduzir os custos gerados por ela. E o Lean Six Sigma cruza as práticas do Lean com o método estatístico Six Sigma para otimizar o desempenho por meio da padronização dos processos e da identificação e eliminação das causas-raiz de defeitos.

Todas essas disciplinas trouxeram avanços muito importantes, porém, reforçam uma visão distorcida do Lean aplicada a um recorte estreito da corporação e da geração de valor, o que, a rigor, poderia ser considerado anti-Lean. Desde a sua origem – o já mencionado Toyota Production System – a filosofia propõe-se a entender o ciclo de valor como um todo, contrariando o modelo tradicional da divisão da corporação em silos funcionais.

Mais do que um método, Lean é a estratégia para o novo mercado
Embora seja normalmente apresentado dessa maneira, o Lean não é um conjunto de práticas que apontam “como fazer”. Ele propõe uma nova forma de pensar o fluxo de geração de valor como um todo, desde o momento da concepção dos objetivos do negócio e a elaboração das estratégias, passando pela forma como se exerce a liderança até como as equipes interagem e trabalham até a entrega ao cliente e o pós-venda.

Com seus princípios e ferramentas, como a disciplina do PDCA (Plan, Do, Check, Act), o respeito aos funcionários e as práticas diferentes das liderança – que têm papel ativo na condução dos times para a resolução dos problemas – essa filosofia de gestão é capaz de mudar hábitos e estimular comportamentos de maneira consistente. E quando se fala em transformação digital, de conduzir a empresa rumo ao seu objetivo de negócio, o passo fundamental e mais complexo é a conquista dessa mudança cultural.

O poder do Lean e como alcançá-lo
Nos anos 80, o Lean causou uma disrupção na indústria transformando profundamente o patamar de produtividade na manufatura mundial. Hoje, aliado ao poder do digital, ele tem a capacidade de impactar o mercado de uma forma ainda mais abrangente a ponto de fazer com que a sociedade consiga gerar muito mais valor de maneira mais eficiente. Na superfície, o que todas as empresas buscam hoje é como “transformar-se” para ter sucesso neste acelerado mundo digital, no qual o poder está com o cliente. Em um nível mais profundo, é uma transformação que exige mudança de hábitos, cultura, forma de liderar e formar novos líderes, como enxergar valor e eliminar desperdício… Enfim, um encaixe perfeito para a aplicação dos princípios Lean de forma ampla. Logo, empresas de todos os setores da economia têm em suas mãos uma oportunidade de ouro para mudar seus patamares de performance e gerar grandes resultados – para a corporação e para a sociedade.

Mas como fazer isso? Costumamos dizer que Lean é sobre aprender fazendo. Não há atalhos ou receita possível que se encaixe em todos os modelos de negócio a serem transformados, cada um deve trilhar seu próprio caminho. Porém, toda jornada Lean que conheço está associada a pelo menos um grande sensei, um mentor “mão na massa” que ensina fazendo, que ajuda a enxergar com novos olhos e a construir o novo mindset para que ele seja, de fato, incorporado de forma sustentável.

No caminho de descoberta do Lean como base da transformação digital da CI&T, por exemplo, não foi diferente. Houve mentores, aprendizado dos princípios e, ao longo de 10 anos, a companhia criou suas próprias estratégias e aprimorou processos que deram origem ao seu modelo de transformação digital, a Lean Digital Transformation. Hoje, a CI&T atua em todo o fluxo de valor, estendendo significativamente o conceito da sua atividade, que se originou na construção de software e se ampliou para etapas anteriores e posteriores, desde o aprendizado que vem com o produto nas mãos do cliente até a concepção da estratégia para atendê-lo. É preciso desenvolver a capacidade de enxergar esse fluxo e buscar melhorias constantes.

Neste contexto, os líderes que passam por toda essa jornada de aprendizado e crescimento, tornam-se grandes senseis, capazes de guiar os seus próprios times e formar novos líderes Lean, assim como de atuar lado a lado com as lideranças e times de outras empresas, nos mais diversos segmentos de mercado, na busca por seus formatos de operação ideais. O resultado? Além de obter crescimento robusto e consistente ano a ano, surgem equipes e clientes mais satisfeitos. Mas mais recompensador é verificar que, ao extrapolar a transformação Lean para outras empresas, é possível contribuir para mudar o patamar de geração de valor do mercado como um todo, e no longo prazo, da sociedade.

À medida que mais e mais empresas e organizações perceberem a oportunidade única que o imperativo da “transformação digital” apresenta para a interiorização de princípios Lean de ponta a ponta, uma mudança perene terá acontecido. Uma mudança que, a exemplo do que aconteceu com a manufatura nos anos 80, não tem retorno: o novo padrão terá sido estabelecido e quem quiser participar do jogo, terá que subir a barra também.

Leonardo Mattiazzi é vice-presidente global de inovação da CI&T e foi co-founder da Sensedia