Quando há exagero, há baixo engajamento e banalização da luta
Lideranças globais começam a rever o peso de pautas ativistas na estratégia de marketing das marcas. Discriminação racial, desigualdade de gênero, respeito à orientação sexual, quebra de estereótipos, inclusão de pessoas com deficiência e etarismo tomaram a mídia e os festivais de publicidade nos últimos dez anos. Amplificadas por smartphones e redes sociais, as mensagens ajudaram a conscientizar as pessoas sobre a cara nefasta de qualquer tipo de preconceito.
A onda progressista lavou a sociedade. Assim, vieram a Lei de Cotas, em 2012; a Lei Maria da Penha, em 2006; e o primeiro beijo gay em uma novela, “Amor à vida”, da TV Globo, em 2013. “Parecia que o conservadorismo estava acuado. As pessoas que se incomodavam com estas conquistas de direitos dos oprimidos aguentaram caladas”, comenta Tiago Pereira de Andrade, coordenador do curso de ciências do consumo da ESPM.
Mas a agenda social passou a ser acusada de supostos exageros no policiamento de condutas e hipocrisia na defesa dos direitos das minorias, críticas infladas pela ascensão do pensamento conservador. “A importância de diversidade e inclusão é inegável. Mas as pessoas começaram a ameaçar empresas de cancelamento, caso elas não tomassem atitudes. A sociedade está farta disso, de problemas na família, no trabalho, na vizinhança”, repara José Mauro Nunes, da FGV Ebape.
A consequência recai sobre possíveis abalos na receita das empresas, pois a articulação de boicotes pode encolher vendas, enquanto governos contrários ao wokeísmo cogitam podar subsídios fiscais. “Empresas existem para servir aos seus clientes e dar lucro. Se o ativismo começa a afetar diretamente a sua lucratividade, e a alienar os consumidores, isso é um problema. E está acontecendo”, avisa Nunes.
Andrade reforça a avaliação de Nunes. “O cancelamento produz um linchamento público, ultrapassando a esfera virtual, em que a pessoa sofre violências, perde emprego e tem a sua reputação manchada, muitas vezes, de forma injusta. Quando há exagero, há baixo engajamento e banalização da luta”, complementa.
Autoridades políticas contrárias ao capitalismo woke sinalizam a queda de braço cultural.
“Se para algumas pessoas ser woke é ter consciência social e racial, questionando paradigmas e normas opressoras historicamente impostas pela sociedade, para outros o termo descreve hipócritas que acreditam que são moralmente superiores e querem impor as suas ideias progressistas sobre os demais”, diferencia Mariana Munis, professora de marketing e comportamento do consumidor da Universidade Presbiteriana Mackenzie Campinas (SP).
O despertar
Palavra de origem inglesa que significa “despertei”, o termo woke pode ter sido cunhado pelo escritor William Melvin Kelley no afã do alerta aventado pela comunidade afro-americana para a injustiça racial. “If you’re woke, you dig it” (“Se está acordado, entenderá”, em tradução livre) foi o título do artigo que ele redigiu no ano de 1962 para o jornal The New York Times. Em 2013, a expressão alçou status de slogan do “Black lives matter”, protesto contra a violência policial nos Estados Unidos.
“Após junho de 2013, quando uma onda de insatisfações das mais diversas ordens tomou as ruas, conservadores ganharam força por meio de um discurso de ordem e segurança”, observa Andrade, da ESPM. O reflexo veio nas urnas. Em 2018, candidatos conservadores ganharam as eleições. Era o prenúncio de um mundo multipolarizado. “Rótulos e posicionamentos foram extremados. A tolerância quase desapareceu. Pelos conservadores, o capitalismo woke se transformou em uma estratégia de mercado nichada para os inimigos”, explica Andrade.
Marcas que ganharam adeptos a partir da luta por direitos começaram a ser boicotadas, mesmo processo vivido pelas organizações que se aproximam do conservadorismo. “Passa a ser necessário fazer estudos para saber de que lado vale a pena estar. São novos nichos que nascem pelo posicionamento social e político”, indica Andrade.
Profissionais sensíveis aos rumos da sociedade e consciência crítica também ajudam a balizar posturas que demandam cuidado e sensibilidade frente a um fenômeno relativamente novo no comportamento. “Existe muita reclamação sobre o exagero de lacração, termo pejorativo para cultura woke. Há uma percepção no ar sobre um cansaço, mas só as pesquisas podem confirmar”, sugere o especialista da ESPM.
A mudança é estudada pelo sociólogo Musa al-Gharbi, da Universidade Columbia, em Nova York (EUA), no livro “We have never been woke: Social justice discourse, inequality and the rise of a new elite” (“Nunca fomos woke: discurso de justiça social, desigualdade e ascensão de uma nova elite”, em tradução livre).
Prestes a ser lançada, “a obra reúne o trabalho que construí nos últimos seis anos explicando o crescimento de Trump, o ‘grande despertar’ e o avanço da desigualdade social. O livro destacará a forma como os capitalistas transformaram o discurso de justiça social em arma, à custa daqueles que, na verdade, são marginalizados”, escreve Musa al-Gharbi, apontando para um iminente esgotamento da narrativa woke, rótulo colado em posturas consideradas “politicamente corretas”, e agora passíveis de gerar prejuízo.
Pesadelo
Conservadores liderados por Ron DeSantis, governador da Flórida (EUA), aprovaram em 2022 um projeto de lei que retirou a jurisdição especial da The Walt Disney Company para operar o parque Walt Disney World Resort como sua cidade. A decisão ocorreu depois que a Disney se posicionou contra a proibição
de aulas sobre orientação sexual nas escolas primárias da Flórida, um dos estados mais conservadores dos Estados Unidos.
A lei “Parental rights in education” ficou conhecida como “Não diga gay”. O impacto é incerto, mas poderia elevar os impostos pagos pela Disney, que tenta apaziguar os ânimos. “É um contrabalanceamento”, considera Nunes, da FGV Ebape. DeSantis disputa com Donald Trump a vaga de candidato republicano ao pleito dos Estados Unidos no próximo ano.
“A eleição presidencial norte-americana de 2024 promete cavalgar nessa polarização, inflamando a rixa entre republicanos e democratas. Isso deve contaminar bastante a sociedade e o ambiente de negócios, justo no momento de aceleração e consolidação da pauta ESG”, prevê Erlana Castro, professora convidada da Fundação Dom Cabral (FDC) e fundadora da rede criativa #ESGpraJA, referindo-se às práticas de sustentabilidade ambiental, social e de governança corporativa aglutinadas na sigla ESG (do inglês Environmental, Social and Governance).
Grupo de mídia centenário, a Disney ainda foi criticada por escolher a atriz negra Halle Bailey como intérprete do live-action “A pequena sereia”, que estreou no Brasil em maio. A personagem Ariel é ruiva na animação original, lançada em 1989. Quem defende a produção, alega que sereias sequer existem, portanto, podem ser representadas por qualquer etnia.
A Gillette, da P&G, também enfrentou situação adversa em 2019, quando lançou o filme “O melhor que os homens podem ser”. Elogiada de um lado, a coragem da marca em questionar comportamentos masculinos tóxicos irritou o outro. Da crise de imagem à queda de vendas, casos taxados pela direita com a frase “Get woke, go broke” (“Fique alerta, vá à falência”) acirram as animosidades. “Woke, no português, traduz como consciente, mas num viés pejorativo. O bordão americano ‘go woke, go broke’ ilustra uma polarização instalada entre as ideias de consciência e lucro, o que não é nada oportuno”, nota Erlana, da FDC.
A manifestação derrogatória reflete a mudança de filosofia empresarial, que se alinhou às pautas ativistas a partir da descrença na capacidade dos governos em resolver problemas sociais. “A população começou a acreditar que empresas são mais eficientes, dando origem ao movimento ESG, pauta que vem desde os anos de 1980, com a responsabilidade social corporativa”, ensina o professor José Mauro Nunes, da FGV Ebape.
Ao acatar os clamores da sociedade, porém, as marcas começaram a ser fiscalizadas. “É preciso entender que vivemos hoje em uma sociedade polarizada. Empresas devem estar conscientes de que encontrarão resistência”, previne Nunes. Rachada, a sociedade ora pende para um lado ora para o outro, dificultando o trabalho de posicionamento das marcas.
Barbas de molho
Indícios do arrefecimento da cultura woke vêm também do Brasil, com a campanha “VW Brasil 70: O novo veio de novo”, que recorreu à inteligência artificial para colocar a cantora Maria Rita e sua mãe, Elis Regina, morta há 41 anos, cantando juntas a música “Como nossos pais”, de Belchior. Criado pela AlmapBBDO para comemorar os 70 anos da Volkswagen, o filme lançado no dia 4 de julho emocionou muitas pessoas. Mas alguns consumidores questionaram os limites éticos intrínsecos à utilização da tecnologia para reviver pessoas.
Leia a íntegra da reportagem na edição impressa de 11 de setembro.