Professora de mandarim, Chen Xiaofen  conta que a maior dificuldade em ensinar chinês é romper a descrença de muitos alunos

Nem o sotaque carioca que encobre um português perfeito esconde a nacionalidade da professora de mandarim Chen Xiaofen. E nem ela tem essa intenção. Promotora da cultura chinesa, ela ganhou muita visibilidade com seu curso online chinesmaster.com.br.

Na entrevista a seguir, ela conta que a maior dificuldade em ensinar chinês é romper a descrença que muitos alunos impõem a si mesmos para aprender. E para os que têm medo dos “tracinhos”, ela mostra toda beleza dos ideogramas por meio da sua simbologia, história, poesia, humor, trocadilhos e tudo mais que cabe à riqueza de uma língua.

Qual a diferença do mandarim e da língua chinesa?
A gente costuma dizer língua chinesa, mas já se entende que nos referimos ao mandarim. Temos na China 56 etnias que mantêm fortemente suas culturas e tradições. A maior delas é a Han, por isso o Hanyu, que literalmente é a língua da etnia Han. Ela se tornou a língua oficial da China com pronúncia e ideogramas padronizados para todo país, que em português se chama mandarim.

Como foi sua trajetória até se tornar professora?
Cheguei ao Brasil com 14 anos e, desde pequena, na China, eu formava grupos para estudar com meus colegas. Além dos deveres de casa, eu gostava de reexplicar a eles a matéria que era ensinada. Aqui no Brasil, fiz a mesma coisa enquanto terminava os estudos. E antes mesmo de concluí-los, eu já estava dando aula de mandarim. Uma professora chinesa que estudou Letras na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e de quem eu tinha sido aluna de português, percebeu que não havia cursos de mandarim bem estruturados, criou um e me chamou para trabalhar com ela em 2004. Passei três anos dando aula nesse curso. No início, tinha bastante dificuldade, ainda não dominava a gramática portuguesa para falar com os alunos e não tinha muita didática. Mas fui assistindo às aulas dela e, com o tempo, desenvolvi a minha maneira de ensinar. Trabalhei três anos nesse curso, depois comecei a dar aulas particulares em empresas como Petrobras, Vale e na antiga companhia aérea Varig, que tinha voos para a China.

O quanto foi difícil para você aprender português?
Foi muito difícil. Quando cheguei ao Brasil, eu não falava. Meus pais também tinham dificuldade. Quem nos ajudava era minha prima, que já morava aqui. Ela conhecia as pessoas, sabia como tudo funcionava, ia nos órgãos públicos. E aí eu pensei: “Quero ajudar meus pais como minha prima nos ajuda. Quero ser útil”. Para mim, isso era o máximo — alguém com independência, maturidade, capaz de resolver as coisas da família. Porque não bastava só falar o idioma, era preciso entender como o sistema funcionava. Fui aprendendo aos poucos. E ao mesmo tempo em que dava aulas, também passei a ajudar os amigos dos meus pais, parentes que chegavam ao Brasil, os ajudava com os pedidos de documentos, identidade e permanência. Também ajudava a alugar apartamento e abrir conta em banco. Coisas que exigem vocabulário mais específico.

Qual sua maior facilidade e o seu maior desafio no ensino?
Minha facilidade é explicar os ideogramas, explicar a gramática chinesa para os brasileiros a partir do domínio do português que eu consegui aprender. Meu maior desafio é quebrar essa ideia de que “chinês é impossível”. Muitos alunos já chegam dizendo que não vão conseguir, que é difícil, que precisa nascer na China. Eu acredito no potencial deles, mas eles também precisam acreditar. A maior barreira é a mental. O primeiro passo é mudar a forma como o aluno vê o aprendizado. Esse passo é o mais difícil.

E como mudar isso?
Eu amo os ideogramas, a etimologia. Lembro que quando era criança, no primeiro ano da escola, a gente aprendia uns 10 ou 20 ideogramas básicos com desenhos: o sol, a lua. Depois disso, era só decorar. Como a criança vê isso todo dia, fica mais fácil. Mas quando acessei meu primeiro livro de etimologia, fiquei fascinada. Comecei a entender como os ideogramas realmente funcionam. Amo explicar a etimologia, explicar a história e acho isso fundamental para alunos estrangeiros. O chinês vê os ideogramas diariamente, aprende de qualquer jeito. Mas o estrangeiro precisa entender a lógica por trás dos caracteres.

Há pessoas mais velhas que são mais resistentes, não é?
As pessoas acham que por ter mais idade não conseguem aprender, mas isso é porque somos mais ocupados, temos mais tarefas, menos tempo para nos dedicarmos. Já os jovens, principalmente crianças e adolescentes, não têm tanto trabalho ou responsabilidades, não precisam cuidar da casa, da família, dos filhos, têm menos preocupações. Por isso absorvem conteúdo com mais facilidade. Crianças aprendem por imersão, elas absorvem o que escutam, imitam tudo. Já o adulto precisa entender a lógica, porque nosso cérebro já é maduro, somos mais racionais. Então são formas diferentes de aprendizado, mas a capacidade é a mesma. O que precisa é um bom método, ter a mente aberta para aprender, se dedicar e ter disciplina para estudar. E esse é o desafio: mudar a mente das pessoas e mostrar que é possível aprender.

Chen Xiaofen, professora de mandarim (Divulgação)

Qual o perfil profissional dos seus alunos?
Os que mais tenho contato são engenheiros da computação, analistas de sistemas, médicos que se interessam por medicina chinesa e, principalmente, comerciantes. Tem também servidores públicos, como os funcionários da Petrobras, militares e guias de turismo. Inclusive, os meus alunos guias me incentivaram a fazer o curso e hoje eu também sou guia aqui no Brasil.

Como os ideogramas influenciam o modo de pensar dos chineses?
A língua chinesa é muito direta e objetiva, e isso reflete no modo de ser dos chineses, que são muito objetivos e ágeis, vão direto ao ponto. A língua não tem conjugação verbal, por exemplo, e reflete os nossos valores, como a harmonia e a hierarquia. Os valores maiores vêm primeiro, como nas datas: primeiro o século que estamos, o ano, mês e dia. Depois parte do dia, o horário. Endereços, a mesma coisa: país, estado, cidade, rua, casa, sempre em ordem. Isso mostra como a linguagem molda as interações sociais dos chineses, em que a hierarquia é importante.

Essa hierarquia se traduz na vida social de que maneira?
Na vida profissional, em uma empresa, funcionários, estagiários não são amigos do presidente, não saem para almoçar juntos, é mantida uma distância para que as posições não sejam confundidas. E isso serve até como incentivo para que os funcionários tenham mais dedicação para chegarem a cargos mais altos em suas carreiras. Na vida pessoal, um vovô não vai ter uma criança como amigo. Aqui no Brasil, embora eu seja chinesa, eu acho ótimo essa convivência de adultos conversando com crianças como amigos e não apenas dando ordem. Acho esse contato com o conhecimento mais amplo muito bom, acho que isso ajuda muito no desenvolvimento infantil, a criança não fica limitada ao assunto de criança, pode ter contato com assuntos que vão ajudar lá na frente no seu trabalho, na sua vida. Na China, os adultos não conversam com crianças como amigos. Hierarquia é isso, é estabelecer uma distância de gerações ou de cargos para manter uma ordem, para ensinar o respeito, e respeito é valor, é importante para não virar desordem, não virar bagunça. Essa hierarquia tem muito a ver com respeito.

Mas não é comum os avós conviverem muito com os netos?
Têm muita proximidade, mas como cuidadores; como amigos não. Eu contei muito com a presença dos meus avós, mas sempre como cuidadores. Os avós
levam para brincar no parquinho, mas a criança brinca com os seus amiguinhos. O avô até pode brincar um pouco com a criança, mas sempre de uma posição de cuidador.

Voltando aos ideogramas, o que fazer para aprendê-los?
Como no Ocidente todos estão acostumados com as letras, claro que fica mais difícil aprender os ideogramas, porque a pessoa tem de começar do zero. No início demora um pouco, porque se está aprendendo a escrever os traços, os formatos dos ideogramas, mas com prática isso é agilizado. O contrário também acontece. Antigamente, eu demorava muito para escrever uma palavra em português, tinha de soletrar, lembrar qual era a letra e depois de tanto escrever a palavra saía automaticamente. Isso é muito comum. E para começar a escrever ideogramas é preciso entender o significado, a etimologia, aprender o grupo mais básico, os pictográficos, que inicialmente foram criados baseados em desenhos. O desenho de uma lua, o sol, o campo, a terra. Quando aprendemos bem o primeiro grupo, aí os ideogramas compostos farão mais sentido. O ideograma de poeira é a junção de pequeno com o ideograma de terra, então poeira é uma terra pequena. Um ideograma de devoção familiar é o de criança com o radical de idoso em cima como uma criança devolvendo a gratidão, o trabalho que o mais velho da família teve para criar o mais novo. Então os ideogramas transmitem uma emoção, uma imagem, um momento, um significado muito mais profundo do que uma palavra escrita por letras.

E como eles traduzem as emoções poéticas, por exemplo?
Eles permitem interpretações muito ricas. O ideograma de ‘pensar’ é formado pela junção do de madeira, um olho e um coração embaixo. Quando um olho olha para um objeto já causa um pensamento e tudo que a gente pensa, para um chinês, o coração, a emoção tem mais influência na razão, no raciocínio. Voltando à sua pergunta sobre poesia, os poemas chineses são sempre em frases com a quantidade certa de ideogramas. O poeta Li Bai, por exemplo, tem poesias que são de quatro versos e cada verso tem cinco ideogramas, sete ideogramas ou nove ideogramas – tem de ser sempre o mesmo padrão. Eu admiro muito quem consegue fazer poesia, rimar e buscar os ideogramas certos para conseguir transmitir uma ideia com cinco ideogramas em uma frase. E a sonoridade é importante. Às vezes, é preciso terminar a frase com a mesma entonação, variando somente o terceiro verso. As poesias clássicas chinesas são assim, cada ideograma transmite um significado que não é um chinês moderno falando. É quase técnico demais, mas é fascinante.

E quando falamos de publicidade, como percebemos o humor, o trocadilho, a ironia dos ideogramas nesse tipo de comunicação?
É totalmente possível, ainda mais em mandarim, em que temos muitos ideogramas homófonos, ou seja, são escritos de forma diferente, mas têm a mesma pronúncia, que permitem trocadilhos, como na pergunta “Que horas são?”, que se pronúncia “ji dian le” (as letras aqui fazem parte do pinyin, sistema oficial de romanização do mandarim, utilizado para representar os sons da língua chinesa com letras do alfabeto latino). Quando chega a hora do almoço, é comum responder com “shi dian le”, que também soa como “são 10 horas”. Mas o ideograma “comer/alimentar” também se pronuncia “shi”, então a frase também pode significar “é hora de comer”. Isso gera trocadilhos visuais e sonoros usados em posts de comida, por exemplo.

E as expressões idiomáticas?
Há expressões idiomáticas formadas por quatro ideogramas com significado completo. Uma delas é uma expressão comum que significa “Uma oportunidade que não se pode perder”. Só que há uma piada trocando o ideograma de “oportunidade” pelo de “frango”, que tem a mesma pronúncia. Então, em vez de dizer “É uma oportunidade que não posso perder”, a pessoa diz: “É um frango que não posso perder”, o que, em um contexto de almoço ou banquete, vira um trocadilho engraçado. Aí entra o charme da língua: a pronúncia continua igual, mas muda o significado conforme o ideograma. E um ideograma com o tom diferente do outro pode transformar a frase completamente. Mas aprender chinês é isso. Exige imaginar as várias possibilidades que um ideograma traz, não dá para traduzir ao pé da letra, é preciso entender o contexto. Se tentar traduzir palavra por palavra, você enlouquece.