Cecília Mello é professora, pesquisadora e doutora em cinema chinês
Ela foi curadora da primeira mostra de cinema chinês na cidade de São Paulo, em 2009, em uma iniciativa do Instituto Confúcio na Universidade Estadual Paulista (Unesp). De lá para cá, Cecília Mello se dedica à difusão do cinema da China para além da sala de aula na Universidade de São Paulo (USP), onde leciona. É autora de diversas publicações, como o livro ‘The cinema do Jia Zhangke’, publicado pela Bloomsbury no Reino Unido. Agora, como curadora do Cineclube do Instituto Confúcio da Unesp, ela fala sobre a importância do cinema chinês para se entender o mundo sociopolítico contemporâneo.
Poderia contar um pouco sobre seu interesse pelo cinema chinês?
Esse interesse veio a partir de alguns filmes-chave, que me fizeram querer estudar mandarim e cinema, arte e história chineses. Um deles foi ‘Terra amarela’, de Chen Kaige, de uma maturidade estética e de um realismo arrebatador que realmente mudou o curso do cinema chinês na década de 1980. Fiquei impressionada com a primeira sequência do filme, ambientada na década de 1930, que mostra um casamento tradicional em uma comunidade muito remota e pobre que vivia em cavernas. O segundo filme foi ‘Tempo de viver’, de Zhang Yimou, um melodrama histórico familiar que desfruta de uma relação intermidiática significativa com o teatro de sombras. O filme é estrelado pelos incríveis Gong Li e Ge You e entrelaça a história de uma família com os principais eventos históricos da China do século 20. Após muito sofrimento e sacrifício, o filme termina com uma nota otimista sobre o futuro do país após a Revolução Cultural, sinalizando a revolução econômica que ainda estava por vir. Finalmente, um terceiro filme que me ajudou a entender a história recente da China: ‘Plataforma’, de Jia Zhangke. Este filme acompanha um grupo de artistas do fim da década de 1970 ao início da década de 1990, e sua história também funciona metonimicamente em relação à era de Reformas da China na década de 1980, que viu o país passar por severas transformações, levando à sua posição atual como uma superpotência econômica no século 21.
Como os filmes chineses podem nos ajudar a compreender o mundo hoje?
A filmografia chinesa oferece uma lente poderosa para compreensão, tanto no contexto interno da China quanto em sua inserção no cenário global. Por meio de suas narrativas, estilos visuais e escolhas temáticas, eles revelam tensões sociais, transformações econômicas, dinâmicas de poder e conflitos entre tradição e modernidade – aspectos fundamentais para se compreender a China de hoje e, por extensão, os rearranjos geopolíticos do século 21. Obras do chamado “cinema de sexta geração”, como os filmes de Jia Zhangke (as obras-primas ‘Em busca da vida’ e ‘Um toque de pecado’ são excelentes exemplos), abordam os impactos das reformas econômicas e da urbanização acelerada sobre a vida cotidiana, revelando desigualdades, deslocamentos populacionais e a dissolução de vínculos comunitários. Já o cinema histórico, frequentemente apoiado pelo Estado, pode expressar narrativas oficiais de identidade nacional, exaltando valores de coesão, sacrifício e continuidade cultural, como se observa em filmes épicos ou de guerra, como ‘A fundação de uma República’ ou ‘A batalha no Lago Changjin’.
Você fala ainda do cinema independente...
O cinema independente ou alternativo frequentemente desafia os discursos hegemônicos, explorando temas como repressão política, sexualidade, questões de gênero e marginalidade – muitas vezes sob risco de censura ou exclusão do circuito oficial. Essas obras funcionam como registros de resistência e memória crítica, oferecendo ao espectador estrangeiro uma visão menos mediada do tecido social chinês. Por fim, o fato de o cinema chinês dialogar com fórmulas de Hollywood, ao mesmo tempo em que preserva estéticas e valores locais, evidencia como a China busca afirmar sua posição na indústria cultural global, num movimento que espelha sua crescente influência política e econômica.
Seria possível comentar como fatos históricos que marcaram as relações de países ocidentais e orientais estão retratados nos filmes, como as Guerras do Ópio e o embargo comercial de 30 anos imposto à China?
A história da China moderna – marcada por eventos traumáticos como as Guerras do Ópio, a ocupação estrangeira, a queda do império, o colonialismo, o embargo comercial ocidental e a luta por soberania – é amplamente tematizada no cinema chinês, especialmente em produções de cunho histórico e patriótico. Esses filmes não apenas reconstroem o passado, mas o interpretam à luz do presente, articulando uma memória coletiva que reforça o papel da China como nação resiliente diante das humilhações do século 19 e das adversidades do século 20. As Guerras do Ópio (1839–1842 e 1856–1860), que abriram caminho para a dominação imperialista ocidental e o chamado “século da humilhação”, são frequentemente representadas como o ponto de ruptura em que a China tradicional é confrontada brutalmente com o poderio estrangeiro.
Poderia citar alguns filmes?
Filmes como ‘The Opium War’, dirigido por Xie Jin, reconstruíram com grande investimento visual e retórico a resistência chinesa à intervenção britânica, apresentando líderes como Lin Zexu como heróis nacionais. A narrativa enfatiza a destruição social e moral causada pelo tráfico de ópio e a exploração colonial, promovendo um sentimento de indignação histórica que ressoa até hoje na retórica oficial chinesa sobre soberania e autodeterminação. O embargo comercial e o isolamento diplomático, que se intensificaram após a Revolução Comunista de 1949, também são pano de fundo de diversas produções. Esse período é frequentemente abordado em filmes que mostram o país em processo de reconstrução socialista, enfrentando escassez de recursos, bloqueios internacionais e desafios internos. Filmes como ‘A fundação de uma República’ ou ‘Meu povo, meu país’ celebram marcos simbólicos – como a fundação da República Popular da China e sua posterior abertura ao mundo – como etapas de superação do cerco internacional. Além disso, cineastas independentes e autores mais críticos abordam as consequências de tais eventos históricos não apenas como feitos épicos, mas como traumas coletivos cujas marcas persistem no presente. Eles exploram os efeitos do colonialismo, da censura, da pobreza e das mudanças abruptas de regime sobre indivíduos comuns. Esse olhar mais intimista aparece em filmes como ‘Adeus, minha concubina’, de Chen Kaige, que atravessa décadas de convulsões políticas e culturais, incluindo a Revolução Cultural, para refletir sobre o custo humano da história. Em suma, o cinema chinês funciona como poderosa ferramenta de interpretação e reconfiguração do passado.
A China anunciou uma diminuição da exibição de filmes norte-americanos. Que tipo de filme dos Estados Unidos é mais consumido por eles?
De fato, a decisão da China de restringir a exibição de filmes norte-americanos, sobretudo em resposta a disputas tarifárias e comerciais, revela não apenas uma estratégia de proteção ao mercado audiovisual doméstico, mas também uma afirmação de soberania cultural em um contexto de competição simbólica global. A China possui um sistema de cotas rigoroso para a entrada de filmes estrangeiros, limitando a aproximadamente 34 os títulos internacionais que podem ser exibidos por ano sob o modelo de “divisão de receita”, a maioria deles de origem norte-americana. Essa política reflete o desejo do Estado de equilibrar o intercâmbio cultural com a preservação dos valores nacionais e do espaço para a produção local. Os filmes norte-americanos que historicamente obtêm maior sucesso são, em sua maioria, grandes blockbusters de ação, fantasia e ficção científica, especialmente aqueles pertencentes a franquias de renome global como ‘Transformers’, ‘Fast & Furious’, ‘Avatar’ e os filmes do universo cinematográfico da Marvel.

Esses atraem o público chinês por suas narrativas espetaculares, efeitos visuais de última geração e apelo universal, que transcende barreiras linguísticas e culturais. Além disso, estúdios norte-americanos costumam adaptar conteúdos e até mesmo inserir personagens ou cenários chineses em suas produções, com vistas a agradar o público local e conquistar a aprovação dos censores – como no caso de ‘Iron Man 3’, que teve uma versão alternativa feita especialmente para o mercado chinês. No entanto, há também uma crescente abertura da audiência chinesa para outros tipos de cinema, especialmente narrativas que valorizam o drama humano, o romance e a reflexão social. Filmes europeus premiados, obras asiáticas de países vizinhos (como Japão e Coreia do Sul) e, eventualmente, produções latino-americanas ou iranianas exibidas em festivais têm encontrado nichos de público nas grandes cidades chinesas, especialmente entre jovens urbanos e universitários interessados em culturas estrangeiras. Isso indica um desejo de diversidade cultural e uma curiosidade crescente por realidades e estéticas diferentes das hollywoodianas. O desafio – e também a oportunidade – para o cinema estrangeiro na China está, portanto, em equilibrar o entretenimento com a sensibilidade cultural local, respeitando os códigos éticos e narrativos valorizados no país. Ao mesmo tempo, o público chinês demonstra maturidade crescente em seu gosto cinematográfico, abrindo espaço, ainda que restrito, para obras mais autorais e provocativas.
A animação ‘Ne Zha’, que tem como enredo um personagem da mitologia chinesa, vem sendo muito esperada aqui no Brasil. O que esse mito pode nos ensinar sobre a cultura e o modo de ser dos chineses?
A figura de Ne Zha, profundamente enraizada na mitologia chinesa, é um dos arquétipos mais emblemáticos da tradição cultural da China, e sua popularização por meio de animações contemporâneas, como ‘Ne Zha’, revela a riqueza simbólica do folclore chinês e aspectos fundamentais do modo de ser e pensar do seu povo ao longo dos séculos. Originalmente retratado em clássicos da literatura mitológica como ‘Fengshen Yanyi’ (A Investidura dos Deuses), Ne Zha é um jovem herói divino que nasce de maneira extraordinária, manifesta poderes sobrenaturais e, desde muito cedo, desafia tanto inimigos externos quanto figuras de autoridade, como o próprio pai. Sua história é marcada por rebeldia, autossacrifício e renascimento: após tirar a própria vida para poupar a família da culpa por seus atos impulsivos, Ne Zha retorna à vida com um novo corpo forjado por um mestre imortal e assume seu destino como protetor contra as forças do mal. Essa narrativa é extremamente reveladora de valores centrais da cultura chinesa. Em primeiro lugar, articula a tensão entre o indivíduo e a coletividade – uma questão recorrente na filosofia chinesa, desde o confucionismo, com sua ênfase na harmonia familiar e na obediência filial, até o taoismo, que valoriza a espontaneidade e a natureza interior. Ne Zha encarna um espírito de transgressão criativa: ele questiona a autoridade, desafia o destino preestabelecido e insiste em trilhar o próprio caminho. Ao mesmo tempo, sua trajetória também envolve redenção e reintegração à ordem social, o que o torna um herói profundamente dialético – ao mesmo tempo rebelde e responsável, solitário e comprometido com a coletividade. A recepção calorosa que ‘Ne Zha’ teve na China, onde se tornou um dos filmes de maior bilheteria da história, demonstra como essa figura mitológica foi ressignificada para expressar as aspirações e dilemas das novas gerações chinesas: jovens que vivem sob intensa pressão social, mas que também reivindicam individualidade, criatividade e autonomia diante das expectativas tradicionais.
Qual o papel de ‘Ne Zha’ na evolução de animação na China?
Do ponto de vista técnico, as animações ‘Ne Zha’ e sua sequência ‘New gods: Nezha reborn’ representam um salto significativo na indústria de animação chinesa, tanto em qualidade visual quanto em narrativa cinematográfica. O primeiro filme se destaca pelo uso refinado de CGI, com designs de personagens estilizados, fluidez nas cenas de ação e uma paleta de cores vibrante que reforça o tom épico e emocional da história. Já o segundo, embora com enredo mais futurista e ambientação steampunk, mantém alto padrão técnico, com cenários detalhados, efeitos visuais sofisticados e uma trilha sonora envolvente, aproximando-se do nível das grandes produções internacionais. Ambos sinalizam a crescente maturidade da China na animação digital, com identidade própria e apelo global.