Pesquisadora de pós-doutorado da UFF, Mayara Araujo é a entrevistada da semana da coluna
O interesse pela China vai além de comércio e economia. Cresce sua imagem atrativa na mídia, em intercâmbios acadêmicos, culturais e missões de negócios, rompendo estereótipos e preenchendo o imaginário com novos valores.
É o ‘soft power’ em ação — influência e persuasão via cultura —, como explica a professora Mayara Araujo, pesquisadora de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF).
“A grande vantagem do conceito é abrir espaço para entender o papel simbólico da cultura e da mídia diante do contexto das relações internacionais”, diz ela.
Qual é o conceito de ‘soft power’ e o que o diferencia das estratégias tradicionais de poder e comunicação?
O ‘soft power’ é a capacidade que um país tem de influenciar as preferências dos outros através da atração, no lugar de métodos coercitivos como guerras e sanções econômicas, que seriam vinculados ao ‘hard power’. A ideia consiste em atrair olhares simpáticos a determinado país por meio de admiração, respeito, interesse na cultura local. Trata-se do uso de recursos intangíveis. Muito vinculado à ideia do ‘soft power’, também existe o conceito de “nation branding”, que pode ser entendido como a maneira pela qual uma nação passa a ser conhecida e percebida diante de uma audiência doméstica e internacional, a partir de esforços por parte do setor público (por meio de políticas e estratégias governamentais) e do setor privado (por meio de produtos culturais e midiáticos). É uma maneira de formular ou reformular a imagem de um país a partir de estratégias do campo da publicidade, como a criação de marcas, na qual se estabelecem os valores pelos quais esse país deverá ser reconhecido.
É possível descrever vantagens e contradições desse conceito?
O ‘soft power’ traz uma contribuição interessante ao ilustrar que a influência entre os Estados pode ser feita por meio de métodos mais amigáveis do que a imposição. A grande vantagem do conceito é abrir espaço para entender o papel simbólico da cultura e da mídia diante do contexto das relações internacionais. Geralmente, o debate em torno da cultura e da mídia é relegado a um papel secundário. Chamar a atenção para isso é importante. No entanto, uma das dificuldades encontradas em relação a aplicabilidade do conceito é sua mensuração. Como medir, de forma objetiva, a influência da cultura e dos valores de um país em outros? Outra questão importante é a reflexão em torno da linha tênue entre ‘soft power’ e imperialismo cultural e midiático. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, é difícil dissociar o apelo cultural global da lógica e da estrutura de dominação simbólica que sustenta a sua posição. Isso levanta dúvidas sobre até que ponto essa influência é voluntária ou continua sendo imposta de forma branda. Outro exemplo é o Japão: até que ponto o seu ‘soft power’ se sustenta diante do contexto dos países do leste da Ásia, que foram colonizados e anexados ao “Grande Império Japonês” no início do século 20, no qual a memória desse passado ainda lateja e reverbera até hoje em discussões como a das “mulheres de conforto” (termo usado para descrever meninas e mulheres obrigadas a servirem como escravas sexuais de militares japoneses no início do século 20)?
Quais fatores históricos e geopolíticos ajudaram a consolidar o ‘soft power’ como uma ferramenta relevante nas disputas por influência no mundo?
A consolidação do ‘soft power’ como uma ferramenta relevante está muito ligada ao cenário pós-guerra fria. Com o fim da União Soviética, o mundo passa a ser marcado por uma ordem unipolar centrada nos Estados Unidos, e, com isso, também se transforma o vocabulário usado para falar sobre influência e dominação. Até então, boa parte das análises girava em torno do conceito de imperialismo cultural, muito associado à crítica da presença massiva dos produtos midiáticos estadunidenses em países periféricos. No entanto, a vitória do modelo liberal ocidental nos anos 1990 trouxe consigo a ideia do neoliberalismo como o “único caminho possível”, e essas leituras começam a ser substituídas por outras que falam em atração, prestígio e legitimidade simbólica. O ‘soft power’ passa a dar conta dessa nova forma de hegemonia, baseada menos na força direta e mais na capacidade de fazer com que outros países queiram se alinhar a determinados valores, modelos culturais e políticos. Isso se articula com a expansão dos fluxos culturais transnacionais, a consolidação das grandes corporações midiáticas e, mais tarde, com a intermediação das plataformas digitais. No lugar da imposição, o momento passou a ser de sedução.

Quais são as diferenças do conceito chinês em relação ao modelo ocidental?
O conceito de ‘soft power’ conforme formulado por Joseph Nye, que o criou, se apoia em três pilares: cultura, valores políticos e política externa. A proposta chinesa, no entanto, desloca o centro desse tripé e coloca a cultura como o “coração e a alma” do ‘soft power’ chinês. Por isso, na China, o termo ‘soft power cultural’ vem ganhando força, muitas vezes substituindo o próprio termo ‘soft power’. Outra diferença importante está no fato de que, enquanto o modelo de Nye foca na atração voltada para uma audiência externa, o conceito chinês é pensado para dentro e para fora. Há uma preocupação em reforçar valores nacionais, coesão interna e soberania cultural, de modo que a projeção internacional é vista como uma extensão do fortalecimento doméstico. O ‘soft power cultural’ na China é parte de um projeto maior de rejuvenescimento cultural e consolidação do papel do país no sistema internacional. Além disso, há também um destaque no papel do Estado. O ‘soft power cultural’ chinês não é descentralizado, mas, sim, um esforço político articulado, que visa a fortalecer as indústrias criativas, projetar instituições como os Institutos Confúcio e a mídia estatal chinesa e criar as bases pelas quais a China pode ser uma participante ativa na formação de sua imagem tanto de forma interna quanto para o exterior.
No livro ‘The present and future of China’s soft power’, o autor Zhao Lei afirma que o “crescimento do soft power é a base para a realização do sonho chinês” e atrela a essência do ‘soft power’ à cultura, que por sua vez é essencialmente um estudo dos valores. É possível comparar os valores base do ‘soft power’ chinês com o norte-americano?
É interessante notar que enquanto o modelo de ‘soft power’ estadunidense promove os pilares cultura, valores políticos (democracia liberal) e política externa, a China parece estar mais interessada em destacar características como harmonia, coletividade e apoio à soberania nacional. De um lado, a China se apoia nos valores da própria cultura de base confuciana e apreço à ideia do ‘nós’ e, do outro, a China ‘responde’ a sua história mais recente, na qual o seu território foi invadido, dividido e sua soberania foi violada. Essas são as bases de sua promoção. A meu ver, a questão aqui é histórica: o ‘soft power’ estadunidense parte de um lugar que promove a ‘universalização’ dos próprios valores, que são disseminados a partir de um caráter de algo desejável. Não é à toa que a indústria cinematográfica de Hollywood, embora sequer seja a maior do mundo (fica atrás de Bollywood, na Índia), é colocada em um patamar de superioridade, a premiação do Oscar reivindica um status de global, mas premia somente narrativas estadunidenses, salvo raras exceções como foi o caso de ‘Parasita’, em 2019. Esse movimento possui raízes profundas com o lugar e o passado dos Estados Unidos no mundo. A China, também respeitando a própria história, está mais preocupada em garantir respeito à sua diferença e se apresentar para o restante do mundo a partir do seu olhar.
É possível analisar o ‘soft power’ por outros países asiáticos?
Sim. A Coreia do Sul é um dos países asiáticos que tem investido muito nessa ferramenta “menos convencional” de persuasão. A popularidade, inicialmente, do K-pop e dos K-dramas ilustram esse poderio. Hoje já não é mais incomum as pessoas demonstrarem interesse em conhecer mais sobre a história coreana, a culinária, a indústria da beleza... Tem sido um efeito em cadeia e, com isso, a audiência global está cada vez mais por dentro da Coreia do Sul como uma marca nacional. O Japão também teve êxito nesse sentido, mas de maneira menos estruturada que a Coreia do Sul. Nos anos 1990, existiu um sólido esforço em exportação da cultura pop japonesa (animês e mangás), mas só em torno de 2005 que esse movimento se tornou uma política de Estado, através do ‘Cool Japan’, que uniu elementos da cultura tradicional japonesa com produções culturais e midiáticas contemporâneas. É curioso que, mesmo no Brasil, o termo ‘Cool Japan’ não se popularizou, diferentemente da ‘Onda Coreana’ que é mais facilmente reconhecida. Hoje em dia, também se pode falar de uma espécie de ‘Thai Wind’ da Tailândia, em virtude do sucesso de produções BL/GL (Boys love/Girls love), mas esse movimento é mais recente.
O ‘soft power’ é uma ferramenta importante para as atividades de propaganda, marketing. O que profissionais dessas áreas precisam estar atentos para utilizá-lo da forma mais eficiente e ética?
O conceito de ‘soft power’ é uma ferramenta importante para as práticas de publicidade, propaganda e marketing, na medida em que amplia a compreensão do papel simbólico dessas atividades no cenário global. Profissionais dessas áreas precisam estar atentos ao fato de que o ‘soft power’ não se limita a estratégias explícitas de promoção nacional, mas pode emergir de forma orgânica, por meio da difusão cultural associada a marcas, estilos de vida e produtos midiáticos. Aqui, cabe uma distinção fundamental: enquanto o ‘soft power’ diz respeito à capacidade de um país ou cultura atrair e influenciar por meios simbólicos, o ‘nation branding’ é um conceito irmão que surge no campo da comunicação e se configura como uma estratégia planejada de gestão da imagem. Nesse sentido, pensar a publicidade à luz do ‘soft power’ permite ir além da lógica das vendas, compreendendo-a também como forma de influência cultural e política. Nesse ponto, as próprias críticas que são feitas a esses conceitos são também frutíferas para pensar em termos de promoção: se o ‘nation branding’, por exemplo, tende a criar uma certa “unificação” cultural de um país, que é abrangente e multifacetado, valeria a pena pensar em termos de representações culturais plurais. Se o ‘soft power’, por sua vez, é frequentemente criticado por naturalizar formas sutis de dominação simbólica ou por subestimar as mediações locais e as resistências culturais, essa crítica pode ajudar os profissionais da publicidade a desenvolverem estratégias mais conscientes e responsivas às dinâmicas de recepção. Isso significa evitar a imposição de valores universais ou estereotipados e, em vez disso, investir em narrativas mais sensíveis às especificidades culturais dos públicos, reconhecendo-os como agentes ativos na construção de sentido.
O que o Brasil pode aprender com os exemplos globais de ‘soft power’?
O Brasil expressa internacionalmente um certo ‘soft power’ através do futebol e das telenovelas, por exemplo. Nós somos amplamente reconhecidos por nossa qualidade televisiva e sucesso no jogo. No entanto, é um movimento mais orgânico do que estruturado. Por isso, entendo que o ‘soft power’, mais do que ‘brasileiro’, é atribuído ao Brasil. Isso é diferente do caso sul-coreano, que organizou uma estratégia articulando o setor privado e o setor público para impulsionar suas indústrias culturais, sendo assim um ‘soft power’ construído. O que falta ao Brasil é de um investimento organizado na projeção de sua imagem.