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A certa altura da saga Em busca do tempo perdido, de Proust, o personagem Marcel tem uma epifania ao ver seu artigo publicado, pela primeira vez, no Le Figaro. Encantado, folheia o jornal muitas vezes, procurando simular um leitor qualquer, imaginar se ele se sentiria ou não atraído pelo artigo, se leria o nome do autor. Lê e relê o texto, até o ponto de já considerá-lo um “velho artigo”, a ser lido e relido com gosto. Pensa que através de cada exemplar frequenta a intimidade de uma leitora qualquer, e imagina sua “presença” repentina no quarto de alguém que gostaria de conhecer.

Marcel descreve o jornal como pão espiritual, distribuído quente e úmido da prensa sob o nevoeiro da manhã junto com o café com leite. É o “pão miraculoso”, multiplicável, ao mesmo tempo um e 10 mil, o mesmo e diferente para cada um, “penetrando, inumerável e de uma só vez, em todas casas”.

Quem já teve texto impresso nas páginas de um grande jornal entende o arrebatamento dessa “primeira vez”. O gosto de ver e passar os dedos pelo seu nome na página, ler e reler cada frase sentindo o cheiro do papel recém-desdobrado, de guardar o exemplar como troféu. Lembro-me dessa sensação algumas vezes, em diferentes jornais e revistas, ao longo da minha carreira, e confesso que continua sendo mais especial no impresso do que no digital.

Por isso lamento cada fechamento de jornal ou revista que perdeu fôlego nessa era de incertezas: a econômica, a da mídia impressa, a do próprio papel do jornalismo. Minha geração vive o desencanto com o desvalor dessa profissão tão criativa, em que nenhum dia é igual ao outro, na qual é preciso “conectar os pontos” o tempo todo, na qual não é permitido não pensar.

Há uns dias recobrei o ânimo durante o encontro da Abap no Rio ao ouvir a visão de um profissional que dedicou os últimos anos à inovação e a pensar o mundo digital, e assumiu a presidência de um grupo editorial que construiu sua história na mídia impressa, a Editora Abril.

Se Walter Longo vai promover uma “revolução digital” na Editora Abril? Ele vai mais longe: vai promover o conceito de “adição” no lugar da “substituição”. Para ele, a crença limitante no fim do papel está levando não a uma morte natural na mídia impressa, mas, em alguns casos, a uma espécie de suicídio.

Ao não enxergar um futuro possível para o papel, sentencia-se a profecia autorrealizável. No lugar de promover a “revolução digital”, Longo propõe “ir além do papel”. Se o factual no digital é imbatível, o que se imprime em papel pode e deve ser sua perspectiva ampliada. Pregar a complementaridade, quem diria, é o maior desafio de Longo numa empresa que, diz ele, precisa baixar suas “armas digitais” para cultivar uma alma digital que não mata o impresso, mas adiciona a ele novas possibilidades e caminhos. 

O tipo de visão que reinventou a indústria do vinil, mais “live” do que nunca, com a proposta renovada de uma experiência diferente a quem já carrega um milhão de músicas no iPod: o prazer de ouvir um som mais “real”, numa vivência sensorial que amplia e qualifica. Não exclui, não mata. Adiciona. Tempera. Dá outro sabor.

Quero dedicar estas linhas a Dimitrius, estagiário do jornal O Globo. Li seu nome outro dia nos créditos de uma matéria e me peguei imaginando com o que ele sonha. Quais são seus planos. Se o seu sonho de futuro nessa profissão tem algo em comum com o que a minha geração sonhou nas cadeiras da faculdade de jornalismo. Dimitrius já tem o nome nas páginas de um grande jornal, e vive a dor e a delícia de estar no olho do furacão.

Não desista, Dimitrius! #tamojunto!

Claudia Penteado é jornalista e repórter do PROPMARK