Semana passada, eu vinha pela estrada quando um caminhão tombou na 

minha frente. A carga se espalhou pela rodovia. Como por mágica, naquele ambiente relativamente deserto, começou a brotar gente de todos os lados. Homens, mulheres, jovens, crianças, famílias inteiras atiravam-se às embalagens e, juntando quantas conseguiam, corriam outra vez para suas “tocas”. Outros caminhões buzinavam histericamente como se estivessem a espantar predadores que atacavam alguém indefeso. Mas não fazia a menor diferença. Os saqueadores seguiam o seu ritual obsessivo.

Nem a chegada da polícia ou o risco de ser atropelado afastavam aquela gente do seu objetivo. Ninguém foi molestado por estar assaltando. Parecia que havia, entre todos, um acordo tácito no sentido de que eles tinham o direito à “sorte” obtida com o “azar” de outros, por ser, inclusive, uma das raras oportunidades de obterem um pouco mais do que lhes cabe.

À polícia que, em tese, cumpriria um papel repressor, coube evitar que alguém acabasse debaixo de um carro. Continuei a viagem, pensando no porquê desse afã desesperado em saquear a carga, como se estivessem diante de uma caça presa
a uma armadilha, e no porquê da negligência da autoridade. Então, lembrei de uma entrevista do ator Pedro Cardoso, em que, respondendo ao apresentador Danilo Gentili sobre como se sentia vivendo em Portugal, respondeu que muito confortável. E justificava, explicando que descobrira o que é viver num lugar em que as condições básicas para uma vida digna estão naturalmente asseguradas ao cidadão.

Razão pela qual não percebia lá a ansiedade característica das pessoas daqui, em sair da situação em que se encontram, através da busca incansável e incondicional pelo dinheiro. Dinheiro para que não tenham mais que se sujeitar aos serviços públicos, na saúde, na educação, na segurança etc. Faz sentido.

Os pais, aqui, querem que as crianças estudem para que elas ganhem mais dinheiro do que eles. Os jovens estudam para ganhar dinheiro e melhorarem seu padrão de vida. Todos trabalham para ganhar mais dinheiro. Dinheiro para fugir da situação em que vivem ou para a garantia de que não voltarão à situação em que um dia estiveram. Enquanto não têm dinheiro todos se sentem náufragos.

Ao somarmos os descalabros cometidos por políticos e empresários corruptos com a constrangedora concentração de renda brasileira, compreendemos que, cada um a sua maneira, busque desesperadamente um jeito de alcançar, senão as delícias do paraíso, pelo menos uma saída para os amargores do inferno em que vive.

Quando a injustiça social é relevada (e, de certa forma, todos a relevamos) aqueles que não têm acesso aos padrões imorais ou morais vigentes de enriquecimento vão à caça do seu quinhão do jeito possível. Pensando nisso o restante da viagem, compreendi a angustiada euforia daquela gente diante da chance de ter acesso a “algo melhor” e a intuição da autoridade sobre a necessidade de uma tolerância calculada. Afinal, o seguro vai pagar o prejuízo. Não deixa de ser uma espécie de patrocínio.

Stalimir Vieira é diretor da Base Marketing (stalimircom@gmail.com)