A liberdade e a flexibilidade de horário para o consumo de conteúdo audiovisual são algumas das vantagens dos serviços de streaming. A boa notícia para a TV aberta é que sua integração com o digital também tem sido benéfica para alcançar novas audiências. Quem defende essa sinergia é Amauri Soares, diretor de programação da TV Globo.

Em uma das raras entrevistas ao mercado, o executivo explica que o cenário é desafiador, e que a grade de programação precisou ser repensada e integrada a fortalezas como o Globoplay. A curadoria também se tornou chave para a oferta de conteúdos mais relevantes.

Amauri Soares: “a integração do Globoplay com a TV aberta gera um alcance muito maior”

Como resultado, a emissora vem conquistando audiência crescente em formatos tradicionais, como o Tela Quente. Em 2019, a atração tem média de 41 milhões de espectadores por filme, aumento de dois milhões em relação a 2018. Na entrevista a seguir, Soares destaca ainda o papel analítico e sociológico na hora da concepção da grade.

Você começou como estagiário na TV Globo em 1987 e hoje soma mais de 30 anos na emissora. Como essa trajetória contribuiu para aprender sobre programação?
Tudo que a gente faz em televisão nos prepara para trabalhar na área de programação. Não existe escola, pós-graduação, MBA ou curso de programador. Esse conhecimento a gente forma na própria emissora. Tenho convicção de que tudo que eu fiz na Globo me ajudou a me preparar para o que faço hoje. Trabalhei 15 anos no jornalismo, 5 anos na área internacional, depois mais 5 anos com eventos e há 7 anos na programação.

Ter trabalhado bastante com conteúdo, mas também na área de negócios, me ajudou a ter um olhar 360 voltado para a programação. Ela zela pela audiência, mas também pelo conteúdo e sua adequação. Programação é a guardiã da percepção da marca, da emissora e do conteúdo.

O modelo de grade tem se transformado, sobretudo, com a chegada de players de streaming que dão flexibilidade de escolha à audiência. O cenário é desafiador para a TV aberta?
É muito. Se você comparar com o tempo em que três ou quatro emissoras disputavam a atenção da sociedade, hoje temos múltiplos competidores, com uma diversidade enorme de conteúdo e também de formas diferentes de consumo, alguns são lineares outros não, on demand, gratuitos, pagos. A oferta de conteúdo se multiplicou de forma acelerada. Isso nos traz um olhar muito grande para os programadores. Porque estamos vivendo a era de curadoria.

É fundamental para fazer a diferença nossa capacidade de compreender o público, a sociedade que te assiste, e a partir desta compreensão ter a sensibilidade de escolher e programar os conteúdos mais adequados para esse momento.

O quanto do seu trabalho é técnico, com análise de dados, e o quanto é mais empírico e sociológico?
A programação é uma área de conteúdo, ou seja, ela cruza o conhecimento técnico com a sensibilidade, percepção social e estudo do comportamento do consumidor. Eu, particularmente, enfrento esse trabalho com alma de repórter. Saio todo dia de casa sem saber de alguma coisa e procuro voltar sabendo algo mais. Mas o trabalho na programação da Globo é bastante estruturado.

Temos uma dimensão que chamamos de sintonia com a sociedade, que é o primeiro passo. Nós tentamos conhecer e reunir o máximo de informações conjunturais do momento da sociedade brasileira. Depois buscamos conhecer o comportamento do consumidor, entender se ele está envelhecendo mais cedo, se acorda mais cedo, dorme mais tarde. Tudo isso é muito relevante para fazer televisão. Aí, entra o entendimento da dinâmica do calendário anual. Tem ano que tem Copa do Mundo, Olimpíadas, eleições etc. Só depois que a gente sai em busca dos conteúdos disponíveis para montar melhor a grade.

Como são definidos esses conteúdos? É uma decisão coletiva?
Conversamos com os fornecedores de conteúdo, com os estúdios Globo, com o jornalismo, esporte, Globo filmes e com a área de aquisição, que traz os conteúdos de fora do Brasil, como filmes e séries. É tudo muito articulado e discutido. Fazemos tudo da maneira mais processual possível. Claro que em algum momento, decisões têm de ser tomadas. Qual conteúdo vai pôr antes ou depois da novela? A responsabilidade precisa ser assumida, mas alinhamos os processos ao conhecimento técnico.

O entretenimento tem evoluído muito com a oferta dos serviços de streaming e TV paga. Ainda assim, o Tela Quente, por exemplo, vem obtendo bons resultados. Ao que se devem os resultados?
Neste ano, cada sessão em média do Tela Quente foi vista por dois milhões de pessoas a mais do que era visto no ano passado. De janeiro a outubro de 2018, por exemplo, cada sessão era vista por 39 milhões. Em 2019, estamos em 41 milhões por exibição. Isso tem ocorrido com todos os slots de filmes. A gente atribui isso a um trabalho amplo de aperfeiçoamento da curadoria de filmes e na modernização na relação com nossos fornecedores. A carteira de filmes e a relação com os estúdios americanos evoluíram.

Um mérito de toda a nossa equipe foi o de detectar muito cedo a tendência dos filmes de super-herói, o que nos levou a fechar um contrato de exclusividade com os estúdios da Marvel e DC Comics. Hoje, todos os blockbusters de super-heróis, a Globo tem os direitos para TV aberta no Brasil. Nós ajustamos nosso olhar, modernizamos nossa curadoria para atender essa nova categoria e mudamos a carteira de filmes e os contratos com os estúdios. O que exibimos hoje é o que o nosso publico quer ver.

O que tem sido feito na programação para torná-la mais atrativa, sem perder a identidade e a frequência que também são importantes para o espectador que já está acostumado com horários definidos?
A diversidade, a riqueza e a surpresa do telespectador com a programação estão na curadoria, na escolha dos conteúdos, na criatividade dos estúdios Globo. Nós oferecemos diversas atrações diferentes ao longo do ano. Agora, em outubro, por exemplo, foram quatro novidades. As estreias ocorrem o ano inteiro dentro de slots muito bem marcados. O telespectador conhece os nossos horários e a nossa arquitetura de grade. Mas o que vem em seguida da novela ou jornalístico, por exemplo, é onde entra a estratégia de trazer surpresa e relevância, combinados com o respeito ao hábito das pessoas. Temos uma arquitetura muito calibrada e diversidade de conteúdo para surpreender a audiência.

Quais as vantagens de ter no mesmo grupo uma plataforma on demand como o Globoplay? De que maneira a TV aberta se beneficia dessa integração?
Fortalece muito e nos traz uma tremenda oportunidade. Porque a integração do Globoplay com a TV aberta gera um alcance muito maior. Combina fortalezas. Na TV aberta somos uma casa de grande alcance falando com milhões de pessoas simultaneamente. Na Tela Quente, com 41 milhões de uma vez. E com on demand ela possibilita que o alcance seja estendido. Se você perdeu o capítulo da novela hoje, o Globoplay recoloca você no consumo.

O on demand possibilita que determinados segmentos da sociedade para os quais tenho dificuldade de alcance com a TV aberta sejam alcançados. Se você é uma jovem, mora em São Paulo, trabalha de dia, tem vida social, estuda à noite, é muito difícil te alcançar com a TV aberta. Mas se você tem a oportunidade de assistir os conteúdos da Globo entre uma atividade e outra, isso é extraordinário. Mostra que o Globoplay tem um serviço a prestar e consigo manter contato como universo criativo da Globo mesmo que você não esteja disponível para ver a programação na TV linear.

Você é um consumidor assíduo de conteúdo multimídia? Como se atualiza sobre o que pode interessar do ponto de vista de produções?
Eu vejo de tudo. Para mim é um prazer, e não é porque eu vivo disso, mas porque realmente gosto. Vejo séries, pilotos, filmes. Tem essa dimensão do entretenimento mesmo, mas também de entender os movimentos do mercado audiovisual que atuo. Eu assisto tudo, mantenho muito contato com os estúdios e emissoras de TV americanas. Sou integrante do board da Academia Internacional de Televisão, então, tenho diálogos e reuniões permanentes com os executivos nos Estados Unidos e Europa. Manter esse contato e ver os conteúdos é muito importante para você ter uma visão mais calibrada e contemporânea das tendências.

Muito se discute sobre a relevância da TV e os caminhos que ela terá no futuro. Quais são suas apostas?
A fragmentação, essa oferta segmentada, é extraordinária e é complementar. Mas também coloca luz sobre a importância da comunicação de massa. Com as plataformas digitais, conversar com um nicho nunca foi tão fácil como agora. Por mais nichado que seja determinado grupo ou gosto é possível atender aquela demanda com uma plataforma digital. Agora, falar com as massas, falar com 100 milhões de pessoas por dia, como no caso da TV Globo, é um desafio extraordinário, cada vez maior, que vai exigir o aperfeiçoamento do nosso olhar sobre o país e da nossa sensibilidade de produzir conteúdo relevante.

No Brasil, vejo a TV Globo extremamente relevante. Ela está no centro de todo o buzz nacional, digital, de comentários sobre notícias e com audiência extraordinária. Hoje você olha para grandes questões da sociedade brasileira, e elas estão refletidas em trabalhos nossos na dramaturgia ou no jornalismo. E isso se chama relevância, o nosso conteúdo se mantém assim porque a gente continua atento.

O jornalismo e conteúdos ao vivo continuam sendo as fortalezas da programação da TV Globo. Do ponto de vista do anunciante, é sua missão também pensar na grade?
O atendimento aos anunciantes é uma responsabilidade da área de negócios, a questão editorial fica com o jornalismo, o que a programação precisa ser é um ponto de encontro e de convergência desses interesses que são muito complementares.

O que o departamento comercial quer é o mesmo que nós da programação queremos, que é a conexão com as pessoas. O mesmo vale para os nossos anunciantes, que esperam conteúdos sempre de mais relevância. Em alguns momentos é jornalismo regional, em outros, jornalismo nacional, ou, ainda, dramaturgia, comédia e filmes. A busca permanente pelo melhor mix desses ingredientes é o nosso desafio.