Tings Chak, pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social e doutoranda da Universidade de Tsinghua, está na Conexão Ásia desta semana
“A proteção ambiental não é um obstáculo ao desenvolvimento, mas a sua pré-condição”. A pesquisadora do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social, Tings Chak, lembra que este é um conceito consagrado na Constituição da China e que faz parte de uma visão sistêmica, em que o Estado define a direção estratégica e as empresas são atores cruciais dentro dela. Em tempos de COP30, a doutoranda da Universidade de Tsinghua fala também sobre a importância da comunicação transparente nos processos de proteção e recuperação ambiental e de como o Brasil e a China podem ser um modelo de cooperação internacional.
A morte trágica do arquiteto e urbanista Kongjian Yu gerou uma comoção pública. Qual foi a contribuição dele no combate ao aquecimento global e de que forma a China transformou seu conceito de ‘cidade esponja’ em política de Estado?
A morte de Kongjian Yu foi uma perda trágica e profunda para o movimento global por justiça climática. Ele era mais do que um arquiteto, era um filósofo da adaptação ecológica. Sua importância reside na ruptura radical com o modelo ocidental de gestão urbana da água, que se baseia em infraestruturas “cinzentas” – como canos e diques de concreto – que tratam a água como um inimigo a ser expulso da cidade. Inspirado pela sabedoria milenar dos camponeses de sua infância, Yu propôs o conceito de ‘cidade esponja’, que utiliza soluções baseadas na natureza (pântanos, parques, pavimentos permeáveis) para absorver, reter e purificar a água da chuva. Essa abordagem não só combate enchentes, mas também recarrega os lençóis freáticos, reduz o calor urbano e restaura a biodiversidade. Seu conceito tornou-se política de Estado na China após uma crise. Em 2012, uma enchente catastrófica em Pequim, que resultou em 79 mortes, expôs a falência do modelo de infraestrutura cinzenta. A comoção pública forçou o governo a buscar alternativas. A ‘cidade esponja’ de Yu, antes uma ideia periférica, foi adotada como a solução necessária. Em 2015, o governo lançou um programa nacional bilionário para implementar o conceito em centenas de cidades, com metas ambiciosas para 2030. Foi um momento em que o Estado chinês validou um conhecimento popular e ancestral como base para uma política moderna e de vanguarda.
Você já escreveu a respeito de como a China vem conseguindo recuperar áreas degradadas, como o caso do Lago Erhai. Quais foram as principais ações que tornaram possível a recuperação da região?
O caso do Lago Erhai, na província de Yunnan, é um microcosmo da transição ecológica da China. Há uma década, o lago estava devastado pela poluição da agricultura industrial, do turismo descontrolado e da urbanização. A recuperação foi possível graças a uma combinação única de vontade política centralizada, governança baseada na ciência e mobilização social. As principais ações foram: uma Diretriz Nacional – a recuperação foi definida como uma prioridade nacional, parte do Plano Quinquenal do país, o que garantiu o financiamento e o apoio político necessários. Um Diagnóstico Científico – o Estado convocou cientistas da Universidade Jiaotong, de Xangai. Eles não ficaram em seus laboratórios; foram a campo e, após uma pesquisa meticulosa, identificaram a principal fonte de poluição: o cultivo intensivo de uma variedade local de alho que exigia enormes quantidades de fertilizantes químicos. Uma Ação Focada – com base na ciência, o governo local iniciou uma campanha para substituir o cultivo de alho por culturas mais ecológicas e rentáveis, como cerejeiras e uvas. A Criação de Alternativas – a transição não foi apenas restritiva. Para a pecuária leiteira, por exemplo, foi criada uma solução de economia circular. O sucesso de Erhai mostra que a recuperação ambiental em larga escala é possível quando há um Estado forte capaz de alinhar ciência, política e os interesses da comunidade em torno de um bem comum.
A comunicação no projeto do Erhai deve ter sido um ponto-chave para engajar as pessoas nas mudanças necessárias para a recuperação do lago. Você poderia detalhar como se deu?
Exatamente. A mobilização não foi imposta “com mão de ferro”, mas construída por meio de um intenso trabalho de base para criar um consenso coletivo lIderado pelo Partido Comunista da China. Isso foi feito de várias formas. Primeiro, por meio do exemplo. Quadros do Partido Comunista, funcionários públicos, professores e médicos foram os primeiros a convencer os próprios parentes a abandonar o cultivo do alho poluente. Essa liderança pelo exemplo foi fundamental para quebrar a resistência inicial. Em segundo, a ciência foi para o povo. Os cientistas, como o professor Kong Hainan, não se limitaram a publicar relatórios. Eles foram de porta em porta, conversando com donos de pousadas, restaurantes e agricultores, explicando de forma clara como a poluição do lago ameaçava não apenas o meio ambiente, mas o sustento de todos a longo prazo – ou seja, fazendo trabalho de base. Terceiro, houve um profundo trabalho de educação e mobilização popular para construir a ideia de que a proteção do lago era um bem comum, essencial para o futuro da comunidade. A história do camponês He Licheng é emblemática: sua vida foi virada de cabeça para baixo várias vezes pelas políticas ambientais, mas ele acabou se tornando um membro candidato do Partido, orgulhoso de sua contribuição para o bem coletivo com uma visão de longo prazo. Isso demonstra a capacidade de construir um senso de propósito compartilhado que transcende o sacrifício individual, também pela formação política popular.
Um dos grandes problemas atribuídos à questão ambiental é a pecuária. Poderia comentar sobre a importância da ideia encontrada para a pecuária leiteira com a criação de fábricas de esterco e o quanto isso pode servir de modelo para países como o Brasil?
A solução para a pecuária leiteira em Erhai é um exemplo brilhante de como transformar um problema de poluição em uma oportunidade econômica capaz de tirar muitas famílias camponesas de pobreza extrema. Em vez de simplesmente proibir o gado perto do lago, foi criada uma parceria entre Estado, cientistas, uma empresa privada local e os pequenos agricultores. O modelo funciona assim: o governo subsidia a empresa para que ela compre o esterco das vacas dos agricultores locais. Esse resíduo, que antes poluía o lago, é levado para fábricas e processado, transformando-se em fertilizante orgânico de alta qualidade. O resultado é um ciclo em que os camponeses ganham uma nova fonte de renda, a empresa desenvolve um negócio lucrativo e o fertilizante orgânico é vendido aos próprios agricultores locais (ajudando-os a abandonar os químicos) e até exportado. É um exemplo concreto de como a visão de ‘civilização ecológica’ se transforma em política implementada nas comunidades rurais. Para um país como o Brasil, acho que as parcerias que estão sendo desenvolvidas com a articulação da Associação Internacional para Cooperação Popular, Baobab, a Universidade de Agricultura da China (UAC), que está desenvolvendo parcerias com a Universidade de Brasília, e o Movimento de Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) nas áreas de bioinsumos e de maquinário agrícola para agricultura familiar são algo muito histórico e inovador.
Como esse cenário liderado pela China pode influenciar a forma como empresas globais pensam seus investimentos em sustentabilidade em outros países?
A liderança da China na transição energética e em políticas ecológicas cria um novo paradigma global. Ao fazer investimentos massivos e estatais em tecnologias verdes (solar, eólica, veículos elétricos), a China não está apenas resolvendo seus problemas internos, mas também possibilitando que os países do Sul Global, como o Brasil, tenham acesso às tecnologias mais baratas para implementar os próprios planos de transição ecológica e de segurança energética.
O conceito de ‘civilização ecológica’ traz uma visão sistêmica que une governo, sociedade e mercado. Como as empresas brasileiras e internacionais podem efetivamente se inserir nessa agenda?
O conceito de ‘civilização ecológica’ é a estrutura filosófica que orienta a transição da China. Em 2018, ele foi consagrado na Constituição e se baseia na máxima do presidente Xi Jinping de que ‘águas limpas e montanhas verdes são montanhas de ouro e prata’. Ou seja, a proteção ambiental não é um obstáculo ao desenvolvimento, mas a sua pré-condição. Nessa visão sistêmica, o Estado define a direção estratégica. As empresas não lideram a transição, mas são atores cruciais dentro dela. A parceria estratégica entre Brasil e China, por ser um projeto de Estado para Estado, cria o ambiente ideal para orientar o capital privado a atuar de forma produtiva e alinhada a essa visão de longo prazo para um desenvolvimento soberano e sustentável.

No pouco que sei sobre a China, a imagem do povo do campo me parece quase reverenciada. Qual a importância da comunicação pública de reconhecimento e envolvimento do trabalho dos camponeses nas políticas de Estado?
Essa percepção está correta, mas vai além de uma imagem reverenciada ou romantizada. O campesinato é visto como um agente central que levou o país à revolução e à construção do país e, agora, na sua transição ecológica. O reconhecimento do seu papel é fundamental. Um exemplo concreto é o próprio conceito de ‘cidade esponja’ de Kongjian Yu, que ele creditava à ‘sabedoria do campesinato’. É o reconhecimento de que o conhecimento ancestral de como conviver com a natureza é uma base científica para o planejamento moderno. Outro exemplo é o modelo de ‘Pátio de ciência e tecnologia’, que fez parte da recuperação do Lago Erhai, onde estudantes de pós-graduação em agronomia, vindos das grandes cidades, vão trabalhar, comer e viver no campo, lado a lado com os camponeses e as camponesas. Eles levam o conhecimento científico para resolver problemas práticos, mas, crucialmente, aprendem com o conhecimento prático dos camponeses. Isso cria uma ponte entre o trabalho intelectual e o manual e garante que as políticas de Estado sejam desenvolvidas de forma dialética, com a participação e o conhecimento daqueles que estão na linha de frente da produção. Esse reconhecimento público é essencial para a legitimidade dessas políticas.
O quanto você acha que o setor privado – como conglomerados multinacionais – pode ver sustentabilidade como oportunidade estratégica e não como custo?
Acho que a lacuna entre o discurso sustentável e a prática corporativa é uma característica estrutural de um sistema capitalista focado unicamente na maximização do lucro a curto prazo. Sozinho, o setor privado não fará a transição na escala e velocidade necessárias. No entanto, ele pode e deve ver a sustentabilidade como uma oportunidade estratégica, mas isso geralmente ocorre quando o Estado cria as condições para tal. O exemplo da China é claro: foi o Estado, com vontade política de levar a sério a transição ecológica, que, através de políticas industriais, subsídios massivos, regulação rigorosa, investimento em infraestrutura, mobilização de vários setores da sociedade, criou o maior mercado do mundo para tecnologias verdes. Nesse cenário, as empresas – tanto estatais, quanto privadas – que investiram em veículos elétricos ou painéis solares não o fizeram por altruísmo, mas porque o Estado tornou esse o caminho mais estratégico, que faz parte de um projeto nacional e soberano.
A China é uma potência em mobilidade elétrica, painéis solares e energia eólica. Que oportunidades se abrem para empresas brasileiras nesse ecossistema?
Existem muitas oportunidades para o projeto de reindustrialização do Brasil, embora eu não seja especialista no tema. Mas a associação não deve se limitar a importar produtos chineses, e sim a construir a capacidade produtiva no Brasil que inclui joint ventures para produção local, a transferência de tecnologia e conhecimento, e o desenvolvimento da cooperação nas outras áreas. A oportunidade para o Brasil é usar essa parceria para construir a própria capacidade industrial que complemente um projeto de desenvolvimento nacional e soberano.
Qual a sua percepção sobre a colaboração conjunta entre empresas brasileiras e chinesas em projetos de sustentabilidade que gerem impacto real e reputação positiva para ambos os lados?
Nessa conjuntura internacional, marcada pelas táticas de ‘bullying’ econômica e protecionismo do governo de Donald Trump, estamos vendo a aceleração da cooperação Sul-Sul, um modelo de parceria entre nações subdesenvolvidas que oferece alternativa às relações historicamente desiguais com o Norte Global. O impacto real vem do fato de que essa cooperação está focada em construir capacidade produtiva. O presidente Lula tem sido muito claro em suas negociações com a China, afirmando que os investimentos devem incluir ‘educação, tecnologia e formação de pessoas, para que o Brasil possa fortalecer as próprias cadeias de valor’. Brasil e China podem mostrar ao mundo um novo modelo de cooperação internacional, baseado no benefício mútuo e na solidariedade, o que é fundamental na construção de um mundo multipolar.