Entrevista da semana é com Daniela Mazur, doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

É comum se atribuir a chamada onda coreana, a “Hallyu”, fenômeno de exportação da cultura pop sul-coreana, como o resultado de um investimento governamental. Na entrevista a seguir, a professora doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniela Mazur, detalha o início desse movimento, inclusive sob aspectos social, político e econômico, mostrando como ele impactou o universo de consumo cultural global por meio de lógicas de contrafluxo, inspirando outros polos não-ocidentais, como Índia, Turquia e Nigéria.

Poderia contar o porquê da sua escolha em estudar a cultura coreana?
Meus primeiros passos nesse universo foram em 2010, ainda na graduação, quando tive contato com a cultura pop da Coreia do Sul. Conheci um grupo navegando pela internet que acabou sendo a porta de entrada para outros universos mais próximos dos meus interesses acadêmicos. Estava no bacharelado em estudos de mídia pela Universidade Federal Fluminense. Meu curso sempre foi diverso, muito aberto a debates sobre a mídia. Então, quando cheguei em sala de aula conversando com os professores como Afonso Albuquerque, que foi meu orientador e até hoje é o meu supervisor, dizendo que estava conhecendo um pouco da televisão sul-coreana, eles sugeriram que eu levasse exemplos para serem debatidos.

Mas o que lhe chamou a atenção especificamente?
Meu primeiro contato foi o grupo de K-pop F(X), formado por meninas. À época eu era muito fashionista e uma amiga me mandou o videoclipe delas sugerindo que eu assistisse, porque havia muitas trocas de roupas. Então, o que primeiro me encantou foi a estética do K-pop, tanto o visual, quanto o videoclipe em si. A partir daí, fui levada para outros videoclipes e para os reality shows sul-coreanos que uma das integrantes da banda participava. E isso me introduziu aos K-dramas.

Você pesquisava exatamente o que à época?
Eu era pesquisadora de televisão, estava me preparando para entrar no mercado de trabalho com produção televisiva, pelo menos naquele primeiro momento. Em 2014, fiz o meu primeiro TCC sobre um drama coreano chamado ‘Reply 97’, que fala sobre o passado recente da Coreia do Sul, a partir de 1997, especialmente o estabelecimento das lógicas de cultura fã do K-pop e percalços pelos quais a Coreia do Sul passou no fim dos anos 1990. Essa monografia foi meu primeiro passo como pesquisadora de estudos da “Hallyu”, a Onda Coreana. Quando fui para o mestrado, estudei toda a trilogia: ‘Reply 97, 94 e 88’. O interessante dessa série era exatamente como eles representavam a formação nacional extremamente recente da Coreia do Sul, concomitante à ascensão da indústria cultural coreana e à formação do que hoje chamamos de um fenômeno cultural: a Hallyu – como era representada e como foi digerida nessas narrativas. A partir de um lugar de expansão do universo para além daquela representação ficcional, abarquei o universo em si da onda coreana, da formação nacional, para que possamos entender o que é a Coreia do Sul hoje enquanto fenômeno midiático. Assim foi meu mestrado e doutorado, mas pensando de forma muito mais macro.

E agora o que está estudando?
Estou no meu pós-doc, que não é só sobre a Coreia do Sul, mas sobre a ascensão de polos não-ocidentais no mundo multipolar, especialmente considerando as novas lógicas de poder que estão sendo implementadas no cenário internacional. Nisso, discuto a Coreia do Sul, obviamente, mas também China e Tailândia. Na minha tese de doutorado, já introduzi esse universo quando pensei na Coreia do Sul enquanto um modelo não exatamente repetido, mas inspirador para outros países – Índia, Turquia e Nigéria. Essas novas lógicas não-ocidentais de poder midiático estão se apresentando no cenário global, especialmente nos fluxos globais que estão acontecendo. É, obviamente, uma pesquisa da comunicação, mas pensando também nos efeitos políticos e econômicos.

E o que é esse fenômeno sul-coreano?
Não é simples falar sobre um fenômeno tão grande quanto esse, mas, te dando uma definição, é o sucesso de exportação da cultura pop sul-coreana. A Coreia do Sul não tem precedentes históricos nesse universo de exportação midiática, até acontecer esse processo que hoje nós olhamos e chamamos de Onda Coreana. Existe uma tendência, especialmente na imprensa, de querer defini-la como um projeto de governo, como se fosse algo propagandista. Essa é uma chave de leitura bastante preconceituosa, que olha para a Coreia do Sul sem considerar que, na realidade, um fenômeno vai sendo construído especialmente pelas forças criativas nacionais. Outros incentivos também são parte desse processo.

Daniela Mazur, doutora em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (Gabriel Demartine/ Divulgação)

Poderia detalhar?
Só para poder deixar claro, a Onda Coreana em si, enquanto fenômeno, é algo que pensamos no fim dos anos 1990, especialmente no início dos anos 2000, quando o seu impacto de exportação começa a chegar em outros países e a ter esse impacto de público. Por isso que “Reply 97” foi tão interessante, porque é quando percebemos que a cultura pop coreana tem esse potencial real de exportação, quando a China abraça a importação desse conteúdo e a cultura pop sul-coreana consegue chegar em outros países. E por isso esse processo vai se alastrando. Percebemos os primeiros impactos no fim dos anos 1990, e nos anos 2000, não só em países vizinhos consumindo pontualmente, mas realmente se tornando um fenômeno regional. Depois, percebemos que ele não é só daquela região, mas de múltiplas regiões da Ásia, depois chegando a outros continentes e hoje se estabelece como fenômeno global.

E você também chama a atenção que o universo de formação midiática da Coreia do Sul é mais antigo do que o fim dos anos 1990.
No ano em que o filme ‘Parasita’ ganhou o Oscar (2020) o cinema sul-coreano tinha acabado de completar 100 anos (2019). Então, estamos falando de uma formação de lógicas audiovisuais na Coreia que são muito mais antigas do que a Onda Coreana em si. A televisão, enquanto tecnologia, chega na Coreia do Sul nos anos 1950 e é estabelecida de forma muito parecida à do Brasil. O rádio e a indústria musical da Coreia do Sul também têm uma formação mais antiga. Mas quando pensamos na infraestrutura de uma indústria cultural que começa a ter potencial de exportação, não é só produção local para uma demanda interna, mas uma produção que pensa na formação de uma demanda internacional, outros países querendo importar produtos sul-coreanos. E aí a gente começa a falar de leis de incentivo e de agências de divulgação e internacionalização de conteúdos produzidos pela indústria nacional de cultura. Estamos falando do início dos anos 1990, e há um momento considerado um marco.

Quando foi?
Em 1994, o chamado “fator Jurassic Park” – ‘Jurassic Park’ é um filme de 1993 que fez muito sucesso globalmente. E esse fator é sobre como ele foi recebido na Coreia do Sul, pelo menos pelas autoridades do país, que estava passando por um processo de redemocratização. No fim dos anos 1980, a ditadura oficialmente termina – quer dizer, nos “papéis” termina, mas só vai ser totalmente implementada nas suas lógicas democráticas no fim dos anos 1990. Então, falamos sobre um período de redemocratização, de reimplementação das bases democráticas, que vai do fim dos anos 1980 ao fim dos anos 1990. Naquele momento, não era só um processo de redemocratização, mas também de resgate cultural, resgate de uma identidade nacional que foi negada, apagada, destruída, escravizada, morta em várias frentes – pouco antes disso, o país tinha vivido, do início de 1910 até 1945, uma cruel colonização japonesa pelo exército imperial. Então, assim, quando chega no início dos anos 1990, existem interesses de realocar o lugar da cultura, o que ela significa, como pode estar novamente em pauta. E aí, com o sucesso de ‘Jurassic Park’, percebeu-se que a receita desse filme era igual a 1.500 carros Hyundai, marca considerada naquele momento o tesouro nacional. E com isso perceberam uma indústria na qual também poderiam começar a investir. E, a partir daí – e isso é muito importante –, se começa a ver as primeiras leis de incentivo, as leis promocionais de formação de uma infraestrutura nacional, de industrialização cultural. Então existiam, obviamente, emissoras, agências, produtoras locais, mas faltava a industrialização desse processo, dessa infraestrutura para poder crescer.

Ou seja, é muito mais do que o governo simplesmente colocar dinheiro.
As pessoas entendem que o governo botou dinheiro para criar uma indústria. Eu fico impressionada. Quem dera o país daquele tamanho, saindo de uma ditadura, basicamente pós-guerra, ainda se reestruturando como nação, passando novamente por um processo de redemocratização, pudesse injetar tanto dinheiro para a formação do que hoje se entende como indústria cultural. O que aconteceu foram leis de incentivo, em que o governo criava uma lógica de ponte entre a iniciativa privada e a iniciativa governamental. A iniciativa privada, especialmente os “chaebols” – grandes conglomerados de famílias coreanas, algumas delas muito famosas, como Samsung, LG e Hyundai – faziam essa interconexão com leis de incentivo, que não servem apenas para a parte financeira, mas também para outros aspectos. Por exemplo, foi muito importante o governo, em meados dos anos 1990, ter começado algo essencial que muitas vezes é esquecido: a formação de cursos de comunicação nas universidades. Para ter uma indústria, é preciso ter gente formada para trabalhar nela. Assim, começam a surgir os primeiros cursos de comunicação, voltados para produção cinematográfica, televisiva e musical. Também ocorre a formação de agências que até hoje existem. Algumas mudaram de nome, outras cresceram mais do que outras, mas são agências governamentais de divulgação e promoção internacional da cultura pop sul-coreana, como a KOCCA e a KOCIS, que divulgam filmes coreanos, gastronomia, televisão... O impacto maior, especialmente através das leis de incentivo, foi a criação de uma infraestrutura. E isso gera a onda coreana.

Qual é a razão do sucesso da Coreia do Sul?
É a força criativa de um país extremamente rico em cultura e criatividade. Existe um processo que as pessoas esquecem que o K-pop e os K-dramas são criados por pessoas. Passam por cima disso, e colocam toda força em cima de uma lógica institucional, governamental, tirando qualquer caráter humano disso. Esquecem que, na realidade, o sucesso da Hallyu é graças às grandes forças criativas de um país com uma cultura extremamente rica, com mais de 5 mil anos de história documentada e muito mais sem documentação. Então, por isso, para mim é muito importante lembrar disso. A única questão é que, na Coreia do Sul, existiu um interesse e uma percepção de olhar para a cultura enquanto estratégia econômica. E quando a cultura é entendida como estratégia econômico-política e diplomática, essencial para a formação nacional, aí as coisas se movimentam de outra forma.

Você faria alguma comparação com o Brasil?
O que eu percebo aqui no Brasil é que, apesar de termos grandes forças culturais que poderiam estar bombando no mundo, tanto quanto o K-pop, por exemplo, ou os K-dramas, até porque temos um excedente histórico essencial para entender cada drama, o Brasil nunca olhou para a cultura enquanto uma estratégia econômica, financeira, diplomática ou política importante. Os dramas coreanos são novelas brasileiras que foram um fenômeno de exportação. Nos anos 1970 e 1990, o Brasil conseguiu romper os fluxos e contrafluxos culturais estabelecidos pelos Estados Unidos e pela Europa. Eu conversei com um colega russo lá na Coreia do Sul que me disse ter crescido assistindo novela brasileira. O Brasil é precedente para a Turquia, a China e para a Coreia do Sul, países que não fazem parte das lógicas ocidentais e têm de tentar adentrar nesse universo de consumo cultural global através de lógicas de contrafluxo. As novelas brasileiras da Globo precederam isso. A Globo é um conglomerado, sem dúvida, é uma força muito grande, mas não se trata de uma infraestrutura a partir de uma estratégia nacional. Isso para mim é o mais essencial. É preciso colocar leis de incentivo, investimento, criar lógicas que levem a iniciativa privada a colocar dinheiro nisso, para a gente começar a pensar na formação de uma mão de obra especializada, de uma infraestrutura industrial que as pessoas possam produzir, que as pessoas possam criar.