Com tanta discussão sobre IA e o nosso futuro, e com tanto medo embarcado nessas discussões, resolvi revisitar a obra de George Orwell, ‘1984’. O pensamento foi: se ele resolvesse rescrever a obra hoje, como seria?  Em plena era da inteligência artificial, o cenário provavelmente seria ainda mais inquietante do que o retratado originalmente em 1949. A vigilância constante, o controle da linguagem e a manipulação da verdade, temas centrais da obra, ganhariam contornos atualizados e tecnologicamente sofisticados — e talvez ainda mais verossímeis à luz dos avanços que vivemos.

Em ‘1984’, o “Grande Irmão” representa um poder onipresente, capaz de ver tudo e controlar todos. Na era atual, com câmeras inteligentes, reconhecimento facial, escuta ativa, algoritmos de predição comportamental e coleta massiva de dados por plataformas digitais, a vigilância já não é ficção distópica — é parte do cotidiano. A diferença é que, em vez de um Estado totalitário único, somos monitorados por um ecossistema de empresas privadas, governos e inteligências artificiais que operam muitas vezes de forma invisível, silenciosa e consensual.

O “duplo pensar” — a capacidade de sustentar simultaneamente duas crenças contraditórias — hoje se manifesta no paradoxo da liberdade digital. Ou mesmo da liberdade de expressão que muitas vezes cruza fronteiras do respeito e de todas as formas de preconceito. Plataformas se isentam da cumplicidade disso.

Celebramos essa liberdade de expressão enquanto aceitamos os filtros algorítmicos que determinam o que vemos, o que lemos e até no que acreditamos.

A IA, com sua capacidade de gerar conteúdos hiper-realistas (deepfakes, textos automatizados, vozes sintéticas), leva a manipulação da realidade a um novo patamar, tornando ainda mais tênue a linha entre verdade e mentira, fato e ficção.

Se Orwell escrevesse ‘1984’ hoje, o “Ministério da Verdade” seria uma gigantesca IA treinada para apagar e reescrever dados em tempo real, adaptando o passado conforme as narrativas do presente.

O “Newspeak” evoluiria para uma linguagem padronizada por algoritmos de moderação automática, que suprimem discursos fora da norma sem que humanos estejam cientes disso. O “crimideia” poderia se manifestar como qualquer desvio detectado por IA nos nossos padrões de consumo, nos dados biométricos ou nas nossas emoções captadas por sensores.

Mais do que um alerta político, ‘1984’ hoje seria um tratado filosófico e tecnológico sobre a erosão da individualidade diante da automação.

Winston, o protagonista, talvez não fosse um funcionário de um ministério estatal, mas um analista de dados em uma big tech.

Julia, em vez de rebelde sexual, poderia ser uma ativista digital tentando recuperar espaços de autonomia em uma sociedade regida por sistemas opacos de machine learning.

O que permanece intocado, no entanto, é a essência da crítica de Orwell: a luta entre liberdade e controle, autenticidade e manipulação, indivíduo e sistema. A inteligência artificial não é, por si só, o “Grande Irmão”.

Mas em mãos erradas — ou mesmo em mãos distraídas — pode ser a ferramenta perfeita para que ele finalmente exista, não como um ícone em uma tela, mas como uma presença constante, sem rosto, e impossível de desligar.

Orwell não previu a IA, mas nos deu os instrumentos críticos para compreendê-la. Cabe a nós — leitores, cidadãos, desenvolvedores decidir se a nova era será uma distopia automatizada ou uma revolução consciente.

O poder da nossa criatividade, somado a uma dose de rebeldia e vontade de romper com o status quo, podem nos dar o martelo.

E com ele podemos atirar novamente o martelo no telão, como no comercial histórico da Apple, mostrando que estamos no comando, sim, dessa nova era e que ‘1984’, nunca mais voltará.

Marcio Oliveira é managing director da R/GA
marcio.oliveira@rga.com