Dos muitos textos recentemente escritos para lembrar e homenagear Aldir Blanc, alguns se referiram a “Dois prá lá, dois prá cá” e ao verso “e a ponta de um torturante Band-aid no calcanhar”. Aldir, em toda sua carreira, criou perto de 600 letras musicais, sendo 372 até o ano 2000. Destas, 52 (ou 14% do total) mencionam marcas. No século XX ele foi, disparado, o compositor brasileiro que que mais citou marcas em suas canções – Caetano Veloso, o segundo deles, compôs 21 músicas com a mesma característica, destaque para Coca-Cola em  “Alegria, Alegria”.

Band-aid é apenas uma das marcas referenciadas nos versos de Aldir Blanc. Ele citou outras 75.

Se, de acordo com Dorival Caymi, “todo mundo é carioca, mas Aldir Blanc é carioca mesmo”, muitas das “suas” marcas são naturais do Rio de Janeiro: Angu do Gomes, Bar Luiz, Brastel, Central do Brasil, Correio da Manhã, Estudantina, Lamas, Sloper.

Outras ­– Brahma, Cointreau, cigarros Hollywood e Yolanda – lembram a boemia que Aldir, nas palavras de Rui Castro,  “exerceu como religião”, antes de optar por uma vida doméstica e reflexiva.

Das marcas que constam dos versos das canções de Aldir Blanc, médico por formação, várias são ligadas com o universo da saúde. Algumas de remédios  – desde os inofensivos Maracujina, Emplasto Sabiá, Engov, Sonrisal e Fimatosan, até os tarjados Dienpax e Lexotan – e outras de hospitais ou planos de saúde: Amil, Golden Cross, clinicas Mayo e Dr. Eiras, hospital Rocha Faria.

O professor Luis Antônio Simas descreveu com precisão e clareza os elementos “que formam o mosaico das obsessões blanquianas – os subúrbios, o carnaval, a cultura de rua, o futebol, os assombros da infância..”.  E marcantes, com o perdão do trocadilho, são os produtos que o compositor usou para referenciar e datar seus temas e personagens: Band-aid, sardinha Coqueiro, perfumes Coty, sandálias Havaianas, terno da Ducal, fogão Jacaré, bombas Flit, Light, Leite de Rosas, Rodouro.

Estes dados são parte de uma pesquisa que venho realizando e que resultou na formação de um inventário de letras de músicas brasileiras, de diferentes períodos, todas com uma característica em comum: citação espontânea de pelo menos uma marca registrada para apoiar a narrativa poética.

O  trabalho de levantamento e compilação de informações terminou, por força das circunstâncias, dividido em dois momentos. O primeiro deles ocupou o segundo semestre de 1999 e o primeiro do ano seguinte – na época eu era VP de Planejamento e Pesquisa da então Publicis Norton. Depois de um longo hiato, os dados foram recentemente retomados e enriquecidos, depois da conclusão, em 2017, do meu tardio mestrado em história pela PUC-SP.

As 52 músicas analisadas compostas por Aldir Blanc e seus parceiros – João Bosco, Guinga, Maurício Tapajós e Moacyr Luz, dentre outrosintegram, então, um banco de dados formado por 355 diferentes  músicas criadas por 283 diferentes compositores entre os anos de 1931 e 2000.

No ano de 1931, que delimita o início da série de músicas em que marcas aparecem naturalmente integradas aos versos, duas canções foram gravadas e lançadas. Uma delas é“Picilone”, de Noel Rosa e João Beraldo, interpretada pelo “Bando dos Tangarás” que cita a casa noturna Kananga do Japão. A outra é “Canção pra inglês ver”, composta e cantada por Lamartine Babo. A letra é uma mistura sem sentido de palavras em inglês – ou francês – e português e as marcas são: Underwood, Shell, Studebaker, Standard Oil e Light and Power.

A partir daí, seguro indício de que o que a cultura de consumo começa a se manifestar, no Brasil, já nos anos de 1930, as menções vão ganhando progressiva velocidade até o final da década de 1990, momento final da cobertura de nossa pesquisa.  A relação parcial de compositores com pelo menos uma música citando marca  no seu repertório – e aqui agrupados por geração e/ou gênero musical – é sugestiva da diversidade de temas e públicos associados com a inserção social do consumo:

  • Lamartine Babo, Orestes Barbosa, Noel Rosa, Assis Valente, Adorinan Barbosa, Ary Barroso, João de Barro;
  • Zedantas, Billy Blanco, Antônio Carlos Jobim, Newton Mendonça, Gordurinha, Paulo Vanzolini;
  • Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Aldir Blanc, Tom Zé, Gonzaga Jr., Chico Cesar;
  • Rita Lee, Raul Seixas, Jorge Benjor, Tim Maia, Leo Jaime, Erasmo Carlos, Marcelo Nova;
  • Mano Brown, Renato Russo,  Cazuza,  André Abujamra, Dinho (Mamonas), Chico Science, Herbert Viana.

A análise do conjunto de letras que formam o inventário com perto de 300 canções permitiu a identificação de algumas variáveis com maior capacidade de contextualizar os ambientes e significados que os autores costumam relacionar com marcas. Aldir Blanc  se aproxima da maior parte dos outros compositores nas situações retratadas nas suas letras (cotidianas como regra) e no território da fala (urbano, preponderantemente). De mais específico registramos sua posição na narrativa – Aldir assume, na maior parte das vezes, o papel de cronista e quase nunca é autorreferente ou autobiográfico – e o espaço temporal da suas composições raramente trata do imediato ou do que está ocorrendo, o tempo é tratado como alusão afetiva.

Finalmente, Aldir Blanc criou um estilo, muito bem definido por Luiz Fernando Vianna”: “Blanc construiu uma obra marcada pela capacidade de fundir contrários – humor e fossa,  devaneio e realidade, lirismo e grossura, a aldeia e o mundo. Para ele a vida não comporta reciclagem de lixo. Tudo se mistura. Dava o mesmo valor à palavra mais bonita e ao palavrão mais chulo. Assim criou mais de 600 letras”. Incluindo, acrescento, as 52 que citam marcas.

Evandro Piccino é pesquisador e mestre em história pela PUC-SP.