Como já escreveu Caetano na letra de Sampa, ‘Narciso acha feio o que não é espelho’. Só que agora, o espelho virou digital.

E assim como o mito grego, que se apaixonou por sua própria imagem refletida na água, essa busca incessante por aprovação online – em que cada curtida, comentário ou novo seguidor funciona como um reflexo que distorce o nosso ego – aumenta o risco de ficarmos cada vez mais obcecados por nossas versões digitais.

Ao que tudo indica, as imagens geradas pelas telas, em tempo real, tendem a se tornar, daqui a pouco tempo, muito mais apaixonantes do que as imagem reais.

E a inteligência artificial terá um papel crucial nesse novo cenário, em que a curadoria algorítmica personalizará cada vez mais todos os conteúdos que vemos – podendo reforçar nossas preferências e amplificar esse neonarcisismo digital.

Em contraste com essa lógica algorítmica, fria e calculista, temos a figura humana de Caravaggio, o temperamental e controverso pintor barroco que, enquanto buscava incessantemente a perfeição em sua arte, teve uma vida repleta de imperfeições.

E curiosamente, assim como acontece nos dias de hoje, ele também via na sua tela uma versão melhorada da sua vida real – tanto que seu famoso estilo de pintura chiaroscuro (claro/escuro) refletia esse seu dilema interno: um realismo cru forjado em uma técnica que combinava o uso dramático da luz e da sombra.

E foi por isso que, para ilustrar essa histórica edição de 60 anos do propmark, escolhi essa sua obra-prima que imortalizou a fábula de Narciso: uma imagem poderosa (e cada vez mais atual) que simboliza uma autorreflexão (em todos os sentidos) sobre a autodestruição.

E nos lembra que a crescente obsessão pela própria imagem (seja ela real ou digital) poderá ter efeitos devastadores em um futuro mais próximo do que imaginamos.

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