De uns tempos para cá, bastou uma conexão wi-fi e meia dúzia de palavras bem encaixadas para que uma inteligência artificial entregasse um texto digno de Pulitzer, uma imagem de deixar fotógrafo chateado e vídeos cada vez menos estranhos e mais realistas, Marisa Maiô que o diga.
É a tal da inteligência artificial generativa, ou IAG para os íntimos, que já não é tendência: é realidade. E quem trabalha com publicidade, esse esporte radical chamado de criatividade que obedece a prazos, sabe que ignorá-la seria como se recusar a usar o Photoshop nos anos 2000. Só que, junto com a empolgação, veio a pergunta de um milhão de dólares, ou de um bom processo: isso tudo é legal mesmo? Ou como dizem, posso postar?
Aqueles setores que dizem o que pode ou não fazer, como jurídico, compliance e clearance, se veem diante de um novo desafio: como surfar essa onda tecnológica sem afundar num mar de insegurança jurídica?
Enquanto a tecnologia avança como um foguete, a legislação... bem, a regulamentação vem de carroça. O resultado é que temos IA criando campanhas a custo quase zero, enquanto artistas e estúdios gritam “plágio!” e processam empresas que treinaram seus algoritmos com obras alheias. O dilema é legítimo: como proteger artistas e direitos autorais em tempos de robôs criativos?
Afinal, quem é o autor do que a máquina cria?
Segundo a nossa metafísica Lei de Direitos Autorais, autor é quem cria. Mais precisamente, pessoa física. Máquinas, por mais geniais que sejam com prompts, ainda não têm CPF. Logo, não podem ser autoras.
Mas e se o humano escreveu um prompt com cuidado, intenção, até emoção? E se o resultado saiu com a cara da marca, o tom certo e o impacto desejado? Seria justo dizer que ele não tem direitos sobre isso?
A comparação com ferramentas como Adobe Illustrator ou Blender é útil. Ninguém discute se quem usa esses programas é o autor da obra. Mas no caso da IAG, a dúvida é: será que ela é só uma ferramenta... ou uma coautora?
A resposta mais honesta é: ninguém sabe ao certo. Como não há jurisprudência firme, nem lei específica sobre o tema, estamos em uma espécie de limbo jurídico. E limbos, como se sabe, não são confortáveis, especialmente quando se fala em peças publicitárias e direitos de exclusividade.
Uma solução prática nesse momento de transição é usar obras híbridas, misturando IA com criação humana. O toque humano pode ser o passaporte para a proteção legal. Afinal, uma boa campanha sempre teve um pé na arte e outro na estratégia, por que não também na cautela?
O que as agências e marcas podem (e devem) fazer agora?
Se a sua agência quer sair na frente e brincar de Deus com a IA, vá com fé, mas leve um advogado no bolso.
Primeiro passo: leia sempre os termos de uso da plataforma de IAG. Sério. Aqueles textões que ninguém lê são contratos, com obrigações reais. Alguns sites cedem, sem pegadinhas, os direitos patrimoniais ao usuário. Outros, nem tanto. Tem até os que dizem “use por sua conta e risco”. Adivinha onde mora o perigo?
Outro cuidado essencial: guarde os prompts. Sim, como se fossem recibos de criação. Eles podem servir como prova de autoria ou, ao menos, de participação.
Evite também reproduzir obras protegidas, estilos de artistas conhecidos ou vozes de celebridades. Simular a estética da Disney ou usar a voz da Gal Costa sem permissão pode parecer uma boa ideia até chegar a intimação. Lembra da guarda dos prompts? Também é importante para indicar o direcionamento dado.
E claro, se for usar dados pessoais, siga a LGPD. IA ou não, tratamento de dados exige base legal, finalidade clara e respeito aos titulares.
Transparência: se gerar, avise!
Com tanta incerteza no ar, transparência é segurança. Um bom exemplo é o caso do anúncio que recriou Elis Regina digitalmente. O Conar arquivou a reclamação, mas deixou no ar uma recomendação: sinalizar o uso de IA pode ser um bom caminho.
Não é obrigatório (ainda), mas demonstra respeito e evita surpresas. E sejamos honestos: quando tudo é criado por uma máquina, ser claro sobre isso também é um diferencial criativo.
Esse texto mesmo contou com uma ajudinha do ChatGPT na sua revisão.
IA na publicidade: poder, pode - só toma cuidado
O mercado publicitário brasileiro sempre teve talento para lidar com mudanças. E se virou bem com a chegada do rádio, da TV, da internet e do TikTok, talvez seja o mais preparado para se adaptar à IAG.
Enquanto o Congresso ensaia uma regulamentação e os tribunais ainda pensam, o setor já está agindo. E isso é ótimo, desde que seja feito com responsabilidade. O futuro chegou de novo, e a IA não vai embora. Resta saber se seremos protagonistas ou apenas figurantes da campanha alheia.
Walter Segundo é compliance officer da Binder