A recente devolução de prêmios por agências brasileiras no Festival de Cannes reacendeu um velho debate: até onde vamos para sermos vistos como brilhantes? Vimos que a DM9, por exemplo, teve o Grand Prix cassado após a organização constatar que o material apresentado havia sido manipulado com inteligência artificial, contendo dados questionáveis. Já AlmapBBDO, por sua vez, devolveu o Leão após denúncias de que a própria agência pagou para veicular o anúncio, com intuito único de concorrer ao prêmio. E não são casos isolados. Histórias de “fantasmas” premiados já assombram Cannes há mais de uma década.

O que essas situações revelam sobre nós por trás dos crachás e slogans? Será este um sintoma que retrata a época em que vivemos?

Na psicologia relacional, compreendemos que a motivação humana mais profunda não é o sucesso, a fama ou o lucro. É o pertencimento. É o desejo essencial de ser amado, aceito, validado. O problema é que, em uma sociedade moldada pela lógica da performance, o pertencimento passou a ser confundido com reconhecimento público. E, assim, o sucesso virou a senha para se sentir digno de estar entre os melhores.

Mentimos. Como indivíduos, como marcas, como instituições. E não apenas por maldade. Mentimos para sermos amados, admirados, escolhidos. Mentimos porque vivemos numa sociedade que premia o resultado antes da verdade. Desde que ele seja bem embalado.

Nesse cenário, a mentira se torna uma espécie de atalho emocional. Uma forma de garantir a validação do outro quando se teme não ser suficiente por si só. Não é à toa que tantas das mentiras mais comuns não nascem da intenção de enganar, mas do medo de decepcionar. A racionalização entra em cena como um mecanismo de defesa que reorganiza os fatos para que o erro pareça aceitável. Em vez de assumir uma escolha duvidosa, justificamos com aspectos técnicos, terceirizamos responsabilidades. É o "não foi bem assim", "era só uma simulação", "o cliente sabia".

Mais sutil ainda é o movimento psíquico que chamamos de dissonância cognitiva. Quando nossos valores entram em conflito com nossas atitudes, criamos uma narrativa intermediária que nos protege da culpa e da vergonha. É um processo silencioso, mas potente. Muitas vezes, não mentimos apenas para os outros, mentimos para nós mesmos, até acreditarmos que fizemos o melhor possível.

Mas nem toda distorção da realidade nasce de um conflito interno. Há também formas mais conscientes e estratégicas de manipulação. O maquiavelismo psicológico, por exemplo, é um traço de personalidade marcado pela frieza emocional, pela calculada busca por vantagem e pela disposição em distorcer fatos em nome do próprio interesse. Em ambientes altamente competitivos, como o da publicidade internacional, esse traço pode facilmente se camuflar sob o manto da ousadia criativa, mas não deixa de ser uma forma deliberada de trair a confiança do outro.

Nesses ambientes onde o prestígio vale mais do que a integridade, esses mecanismos se sofisticam. A linha entre criatividade e manipulação estratégica vai ficando borrada. Mentir, nesse contexto, deixa de ser um desvio ocasional e passa a ser quase um sintoma de pertencimento ao sistema. Afinal, quem quer ser visto como o único que “joga limpo” quando todos os demais parecem avançar sem pudor?

Essas histórias reforçam que a mentira não é apenas uma falha moral isolada, mas pode nascer de dinâmicas emocionais, cognitivas e sociais complexas. Aparece por motivações diversas: promover a si ou seu trabalho, escapar de punições, evitar desconfortos emocionais ou simplesmente manter uma fachada. No limite, pode ser fruto de traços patológicos ou calculistas. O escândalo das devoluções no Cannes Lions nos oferece um espelho social e corporativo.

Cannes nos premiou. Cannes também nos desnudou. Que a ressaca sirva de espelho: para o mercado, para as lideranças, para nós.

O mundo da comunicação, especialmente o da publicidade, vive de narrativas. Mas há uma diferença importante entre contar boas histórias e fabricar realidades. A autenticidade, hoje, é mais rara e mais valiosa do que qualquer conceito disruptivo. A verdade, por mais árdua, permanece como a base da confiança e da credibilidade.  E o mercado precisa se perguntar: qual é o custo de manter a ilusão?

Talvez Cannes não tenha apenas punido um erro técnico. Talvez tenha nos convidado a refletir sobre os afetos que motivam nossas escolhas. Sobre o quanto ainda estamos tentando provar que somos bons o suficiente. E sobre a necessidade urgente de resgatar o valor de pertencer por quem se é e não apenas pelo que se conquista. Lembrando que a credibilidade, uma vez arranhada, não se compra com troféu. Ela só se reconstrói com coerência.

Jamille Façanha é psicóloga clínica