Vivemos a era da hiperconectividade. A todo instante, acessamos ferramentas, plataformas e serviços que nos parecem gratuitos. Mas será mesmo que são? A velha máxima do mundo digital segue atual: “Se você não está pagando pelo produto, então o produto é você”.
E isso se traduz, em grande medida, pela cessão voluntária — e muitas vezes inconsciente — de dados pessoais, localização, hábitos de consumo, preferências e até emoções. Ao clicarmos em “aceito os termos de uso”, entregamos muito mais do que imaginamos. Dados que, processados por algoritmos e inteligência artificial, transformam-se em ativos valiosos.
Empresas investem altas somas para que suas ofertas nos encontrem no momento certo — e, de fato, muitas vezes nos sentimos até gratos por isso. A personalização das experiências parece vantajosa: o custo/benefício é atraente, a conveniência é grande, e acabamos por aceitar, quase sem questionamento, o uso de nossos dados como moeda de troca.
No entanto, há outra dimensão da privacidade que vem se tornando cada vez mais delicada: a da exposição pública.
Vivemos hoje sob uma espécie de vigilância constante — não necessariamente estatal ou policial, mas social e tecnológica.
A onipresença das câmeras, dos registros em nuvem, das redes sociais e dos smartphones torna quase tudo documentado. O direito ao anonimato se esvai diante de um clique ou de um compartilhamento.
Recentemente, um episódio ocorrido durante um show da banda Coldplay chamou a atenção do mundo inteiro.
Um casal foi flagrado pelas câmeras, em momento de afeto, e teve sua imagem projetada nos telões do estádio e viralizada nas redes sociais.
A princípio, uma cena comum. Não fosse o fato de que ambos eram casados com outras pessoas — e trabalhavam na mesma empresa, ele como CEO, ela como subordinada.
O que deveria ser apenas um instante íntimo se transformou em escândalo público, resultando na ruptura de dois casamentos e na demissão de ambos.
Diante disso, cabe a pergunta: estaria errada a produção do evento por captar e exibir imagens da plateia? O recurso da “kiss cam” é comum em eventos esportivos e shows, muitas vezes promovendo momentos de leveza.
Mas até que ponto esse entretenimento é inofensivo? Até que ponto temos controle sobre a própria imagem?
Vivemos tempos em que a privacidade deixou de ser uma garantia e passou a ser uma escolha difícil — muitas vezes, inalcançável. A exposição constante molda comportamentos, altera relações e impõe vigilância até nos momentos mais triviais.
E pior: muitas vezes, somos nós mesmos os agentes da exposição alheia — ao fotografar, filmar e compartilhar sem consentimento. Acrescenta-se a isso o temor crescente de que nossos dispositivos “nos escutam”.
Pesquisas sobre data harvesting mostram que, mesmo sem termos dado permissão explícita, microfones de celulares e assistentes virtuais podem estar coletando dados em segundo plano. Essa sensação de sermos constantemente observados — por plataformas, empresas, algoritmos e pessoas — compromete a própria liberdade. A liberdade de sermos quem somos sem medo do julgamento público.
A liberdade de errar, de experimentar, de viver sem ser vigiado. Estamos diante de um dilema civilizatório. A tecnologia avança em velocidade exponencial, enquanto a discussão ética sobre seus limites avança lentamente.
É preciso, portanto, repensar o conceito de privacidade neste novo mundo. Criar marcos legais mais claros.
É uma questão de transparência e de governança de empresas que se utilizam dos dados, sob risco de serem incriminadas. É preciso estimular uma cultura de respeito à intimidade alheia.
E, sobretudo, refletir: até que ponto estamos dispostos a abrir mão da nossa privacidade em nome da conveniência?
Alexis Thuller Pagliarini é sócio-fundador da ESG4
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