Bombril só passou para a história como a marca de um produto com mil e uma utilidades, porque ninguém contestou a afirmação. Caso contrário, se alguém entrasse na Justiça, dizendo que se tratava de propaganda enganosa, pois jamais foi demonstrado cientificamente que a palha de aço fosse eficaz em mil e uma aplicações, a agência teria que criar alguma coisa, justificando o conceito ou reconhecendo que não havia como prová-lo, matematicamente. Esse tipo de job era a glória de qualquer criativo. Eu pagaria para escrever o texto sobre o tema para o Carlinhos Moreno gravar.

Aliás, talvez apenas um texto para ele gravar fosse óbvio demais, e a gente propusesse um anúncio de página inteira nos principais jornais do país, com o título Bombril esclarece, e listássemos mil utilidades para o uso do produto, com um pedido de desculpas no final por não serem efetivamente mil e uma as utilidades. E depois, emendaríamos com comerciais, em que Moreno convidaria as pessoas a ajudarem a marca a completar o número mil e um. Era assim que tratávamos o nosso trabalho. Quanto maior fosse o problema, maior era a vontade de tratá-lo com bom humor, de fazer de qualquer ameaça à reputação da marca, uma oportunidade de reafirmar seus méritos.

Um amigo recentemente me lembrou do comercial do McDonald’s, de uns bons anos atrás, lançando um sanduíche com fatias redondas de bacon, e que já antecipava que não existem fatias redondas de bacon, ou seja, o potencialmente contestável foco do anúncio era tratado como piada, de saída. O papel da criação era esse, antecipar-se, bem-humoradamente, aos problemas. Ou tratar deles depois, com mais bom humor, ainda. Porque éramos nós mesmos os primeiros críticos, os primeiros gozadores, daquilo que pudesse dar margem à discussão. Zoávamos nomes, embalagens, fórmulas, receitas, briefings, gerentes de produtos, diretores de marketing, vice-presidentes comerciais, CEOs; zoávamos os gringos que de vez em quando apareciam, que caíam de paraquedas, com suas recomendações by the book. Zoávamos pesquisas, pré-testes, degustações, testes cegos e tudo o que pusesse em dúvida o que propúnhamos.

Para trabalhar como criativo numa boa agência, além de escrever direito, ter ideias pertinentes, e ser capaz de boas sacadas, você tinha que ser um baita gozador e ter muita perspicácia. Essa perspicácia é que permitia ir além da racionalidade do briefing, de enxergar o óbvio que passava desapercebido para todos os envolvidos com o job, desde os próprios clientes.

Os recentes perrengues vividos por McDonald’s e Burger King, e suas trapalhadas na lida com as acusações de propaganda enganosa, são reveladores de que o nosso negócio perdeu uma das suas melhores características: a capacidade de fazer do um limão, uma limonada.

Os criativos já não são estimulados à ousadia de assumir os problemas como soluções. Cada crise gera uma paralisia geral, faz baixar um manto sinistro de aflição sobre as cabeças, e leva a reuniões urgentes com o jurídico, resultando em comunicados absurdamente pobres e calhordas a ocupar os espaços antes reservados ao brilho criativo.

Stalimir Vieira é diretor da Base de Marketing
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