Shu Zhi Gao é um dos sócios do Hot Pot, um ponto de encontro na Liberdade para quem quer conhecer a culinária e a cultura chinesa
Um ditado chinês fala que tudo se resolve em torno de um hot pot, prato tradicional servido em uma panela com caldo fervente, onde se cozinha à mesa.
Além da comida em si, é uma experiência de compartilhamento e convivência muito particular, como conta Shu Zhi Gao, que junto com Qingjian Sun e Jhony Qiu são sócios do Hot Pot, conhecido também pelo nome chinês Jiu Gong Ge.
Situado na Liberdade (SP), é ponto de encontro de asiáticos que querem matar a saudade de casa e de brasileiros que querem conhecer mais a cultura chinesa pelos sabores da mesa.
Poderia contar um pouco sobre a origem do hot pot (huo guo em pinyin, romanização dos caracteres chineses), prato que alguns remetem à dinastia Zhou, outros à dinastia Han e o quanto essa experiência coletiva reflete os valores da cultura chinesa?
O hot pot é um prato milenar que tem mais de 2 mil anos de origem. À época da dinastia Han, as pessoas já usavam carnes dentro dessa sopa. O costume de se cozinhar dessa forma seguiu, foi sendo aperfeiçoado e ultrapassou o tempo até se tornar popular como é hoje – uma panela mantida com caldo fervente à mesa, onde cada pessoa vai colocando os ingredientes que escolhe, como verduras e legumes, e cozinhando ali mesmo.
O restaurante recebe tanto brasileiros quanto asiáticos. O que mais surpreende cada público quando experimenta o hot pot pela primeira vez?
Quando chegam ao restaurante pela primeira vez, os brasileiros ficam surpresos. Como os alimentos vão crus para a mesa, eles perguntam: ‘Cadê a salada? Cadê o prato feito?’... Então a primeira vez, normalmente, é de surpresa. Mas à medida que vão experimentando, vão descobrindo como funciona, como cozinhar as carnes, misturar os demais ingredientes, misturar nos diversos molhos que dispomos, enfim, vão vendo o jeito de comer e aí começam a gostar.
O que é que não pode faltar de jeito nenhum para ser, de fato, um hot pot?
O que torna o prato um típico hot pot são os caldos, sejam com pimenta ou sem pimenta (eles oferecem caldos de carnes, legumes, tomates, cogumelos e vários outros). O cozinheiro sempre vai fazer essa sopa no dia, usando uma variedade de temperos.
No mesmo dia?! Quanto tempo demora?
Sim, tudo no mesmo dia, sendo cozido por cerca de umas seis horas para dar o sabor e o aspecto necessários. E nesse caldo, quando chega à mesa, é onde o cliente vai colocando os demais itens, como carnes de boi fatiadas bem fina, de porco, de carneiro, vários tipos de cogumelos, verduras e legumes, como acelga, espinafre, milho, nabo, abóbora d’água e batata. Pode-se colocar também tofu, raíz de lótus... É uma variedade muito grande de opções.
Há variados tipos de hot pot, a depender da região da China. O que vocês servem aqui é inspirado em qual região do país e quais são as particularidades?
Da região de Chongqing (uma das megacidades da China, com mais de 30 milhões de habitantes). Como é uma região muito úmida e fria, é um local muito apropriado para comer coisas quentes. E é por esse motivo que lá também as pessoas gostam muito de comer pimenta. É um prato reconfortante para um dia mais frio.
O fato de estarem situados em um bairro típico de concentração asiática como a Liberdade, em São Paulo, facilita a obtenção dos ingredientes, por estarem próximo de mercados asiáticos, ou vocês têm fornecedores de outros locais?
Muitos mercados foram sendo abertos no bairro, onde é oferecida uma grande variedade de produtos asiáticos, sejam alimentícios ou não. Muito do que eles vendem nós usamos no restaurante, mas também já achamos os produtos aqui no Brasil.
Vocês usam algum produto que só tem na China?
A maioria dá para comprar aqui. Alguns têm um pouquinho de diferença na qualidade, a depender do que seja, mas a maioria já é possível encontrar com fornecedores no Brasil.
Vocês passaram a oferecer o hot pot aqui no Brasil em 2017. Como surgiu a ideia de montar um restaurante em São Paulo? É possível dizer que vocês foram os primeiros?
Nós três já trabalhávamos com comida há muitos anos, desde muito jovens. Antes de virmos morar no Brasil, nós moramos na Europa e nos Estados Unidos. Eu morei na Europa por 20 anos. Fui para lá muito cedo, com uns 16 anos (hoje ele tem 45 anos). Há muitos chineses na Europa trabalhando com culinária. Então, já acompanhando o consumo desse prato um pouco na Europa e nos Estados Unidos, onde o hot pot já era bem conhecido há uns 50 anos quando eu estava lá, pensamos em trazer essa culinária para o mercado brasileiro também. Nós chegamos aqui em 2017, com o planejamento para abrir o restaurante, mas inauguramos mesmo em 2019.
Vocês estavam juntos na Europa?
Nós nos conhecemos desde crianças na China e estávamos juntos na Europa, trabalhando. Só depois viemos para o Brasil com a ideia de abrir o Hot Pot.
De qual região da China vocês são?
Somos de uma cidadezinha da região do sul da China, Qintian (província de Zhejiang). Lá é uma cidadezinha com uma população de cerca de 500 mil pessoas, mas o curioso é que 300 mil foram tentar ganhar a vida fora. E a maioria que continua vivendo por lá, esses cerca de 200 mil, são mulheres, crianças e idosos.
Ao abrir o Hot Pot houve alguma dificuldade para atrair o público?
Para atrair os asiáticos, não. Foi muito fácil, na verdade. Já para atrair o público brasileiro, foi realmente um desafio, porque para muitos é uma culinária muito diferente, muito nova. Mas o que acabou acontecendo é que muitos asiáticos que passaram a frequentar o restaurante foram comentando e trazendo os amigos brasileiros para conhecer e experimentar também. O boca a boca, né? E isso acabou por se tornar uma boa forma de propagar o restaurante e essa culinária para os brasileiros. Eles passaram a conhecer o hot pot, a gostar e frequentar. Embora no começo possa parecer difícil para os brasileiros saberem como funciona ou causar algum estranhamento sobre o que escolher e cozinhar os alimentos ali na mesa mesmo, nossos atendentes são bem treinados para ajudá-los com isso. Eles explicam tudo, tiram dúvidas, ajudam...
Contando o meu caso particular, eu conheci o Hot Pot, porque a minha sobrinha, à época com uns 10 anos, resolveu celebrar o aniversário dela aqui, mas não tenho ideia como ela ficou sabendo do restaurante de vocês e nem como ela sabia escolher tudo com tranquilidade.
As crianças acham muito legal o hot pot, ficam curiosas, porque é um compartilhamento, um jeito diferente de comer para elas. Hoje em dia, todo mundo vive com o celular, mas em torno de um hot pot, todo mundo tem de parar, deixar o aparelho de lado e estar mais voltado para a comida, para o compartilhar, para o comer junto...
Qual o perfil dos visitantes? Há diferença do público a depender dos dias ou horários?
Agora já atingimos um público de 50% asiáticos e 50% brasileiros. Mas o movimento de segunda a quinta-feira ainda é, normalmente, um pouquinho mais fraco. Já de sexta a domingo, o movimento muda. É bem cheio.
Há também algumas diferenças de itens entre o cardápio em português e chinês. Poderia comentar as diferenças principais das preferências entre asiáticos e brasileiros?
Sim, temos os cardápios em português e em chinês, mas a maioria dos itens é igual. Há algumas diferenças, porque o paladar dos chineses já é mais habituado com alguns temperos, como a própria pimenta, e itens no caldo que os brasileiros, às vezes, nem conhecem ou não têm hábito de comer dessa forma.
Como foi o treinamento para que os profissionais contratados aqui no Brasil atendessem um restaurante de comida típica chinesa como o Hot Pot? Houve alguma questão cultural de entendimento?
Com a experiência que já tínhamos por ter trabalhado muito tempo nessa área, fomos treinando os nossos funcionários para o tipo de atendimento que requer um restaurante de hot pot. Por exemplo, eles precisam ter muita atenção com a umidade do local provocada pelas panelas quentes à mesa, porque isso pode deixar o piso escorregadio. Então fomos orientando para questões como essa, pois temos de ter atenção com a segurança. Da mesma forma, eles também têm de estar atentos aos sistemas de ventilação, de ar-condicionado, para dissipar essa umidade mais específica de um restaurante como esse. Tudo isso, vamos treinando, orientando sempre e aperfeiçoando.
Foi difícil esse treinamento, uma vez que tem também o componente cultural?
A maioria dos funcionários que contratamos já tinha experiência com restaurante. Eles já eram profissionais da área. Então não tivemos muitos problemas. Os detalhes foram com as particularidades do tipo de prato em si. Por exemplo: eles são treinados para terem sempre muita atenção quando levam as panelas com caldo quente à mesa – não podem nunca levar a panela com o caldo quente, segurando-a com a mão para a mesa; eles sempre têm de colocá-la no carrinho para levá-la até o cliente. Tudo isso é por uma questão de segurança que esse tipo de prato exige.
É um tipo de atenção específica...
Nosso lema aqui é que qualquer local em que o nosso cliente esteja precisa estar limpo, bonito e ser útil. Então, temos essa preocupação em proporcionar um lugar agradável, onde todas as áreas estejam limpas, onde nossa cozinha, que também é aberta, possa ser vista para que todos que estiverem aqui consigam ver os produtos, os ingredientes e o que está sendo preparado e como está sendo preparado, tudo dentro das normas de segurança alimentar... Essa é nossa maneira de trabalhar no Hot Pot.
Para empresas e grupos de trabalho, a refeição no Hot Pot pode ser um momento de integração. Vocês já perceberam um movimento de empresas usando o restaurante para confraternizações e networking?
Há muitas empresas cujos executivos vêm comer aqui. Como o hot pot é uma panela que se mantém quente pelo tempo que se queira, eles podem ficar conversando e comendo juntos bastante tempo. É um prato de muita interação para os chineses. Como estão longe da cidade natal, eles pensam na culinária deles e o hot pot certamente é uma das primeiras opções. Além disso, na China, usa-se muito uma frase antiga que fala que “Não há nada que não se resolva em torno de um hot pot”. Então, se um amigo estiver brigado com outro, tiver se desentendido, vão comer um hot pot e na medida que vão comendo, vão conversando e o desentendimento acaba.
Já pensaram em abrir outras unidades do restaurante em outros locais do Brasil?
Nós fomos pioneiros em abrir um restaurante de hot pot voltado também para brasileiros. Inclusive, quando começamos, tínhamos panelas pequenas mais direcionadas para eles, porque não imaginávamos que eles fossem gostar tanto de compartilhar. Agora, já estamos vendo um movimento de abertura de vários outros restaurantes desse prato, o que é bom. Isso é que é o importante: levar essa culinária para mais gente, fazer com que o hot pot chegue cada vez a mais pessoas. Achamos muito bom estarmos contribuindo para a disseminação desse prato e da culinária chinesa. Sobre abrir em outros locais, sim, nós pensamos, mas ainda estamos vendo aqui em São Paulo como isso se consolida para expandirmos para outros locais. Por enquanto, temos de ver se há interesse de outros locais também em aprender sobre essa culinária. Talvez possam também vir aqui aprender para levar para seus estados.
Olhando para o futuro, você acredita que o hot pot pode se consolidar no Brasil como uma experiência cultural e gastronômica tão marcante quanto o sushi japonês ou o lámen já são hoje?
A culinária chinesa é muito ampla. Não tem somente o hot pot. Há várias outras culinárias que podem ser exploradas e também estamos atentos a isso. Estamos estudando a oportunidade de trazer algo diferente e para isso temos de escolher bem o local, algum espaço que seja interessante como este que estamos aqui na Liberdade.
Qual a mensagem principal que você diria o hot pot transmite sobre a cultura chinesa e que podemos aprender com ela?
É um compartilhamento de culturas. Na China, a culinária brasileira também está muito presente, e aqui nós esperamos mostrar um pouco do que oferecemos por lá. E essa mistura, esse compartilhamento que ajuda a nos conhecermos melhor, a estarmos mais próximos e a fortalecer essa ligação entre as pessoas.