No dia dois de fevereiro passado, um jogo de início de temporada da série A2 do Campeonato Paulista de Futebol (antes chamada de segunda divisão) demonstrou que o preconceito homofóbico, algo que vem diminuindo em diversos setores da sociedade brasileira, ainda é bastante resiliente no esporte mais popular do país.  

Naquela tarde de domingo, o goleiro Dheimison, do visitante time do Rio Claro, foi alvo de ofensas homofóbicas gritadas pela torcida da Portuguesa Santista, no estádio Ulrico Mursa, em Santos, o que levou à interrupção da partida pelo árbitro, que registrou o ocorrido em súmula.

Em agosto do ano passado, o Supremo Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) determinou que cantos e atitudes homofóbicas nos estádios brasileiros sejam passíveis de punição. Clubes podem perder pontos nos campeonatos que disputam por conta das ofensas.

O caso que aconteceu em Santos se encaixa como uma infração ao Artigo 234-G do Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), o qual fala sobre “praticar ato discriminatório, desdenhoso ou ultrajante, relacionado a preconceito em razão de origem étnica, raça, sexo, cor, idade, condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência”.

Em Santos, além da óbvia rivalidade esportiva, o que atiçou a torcida do time da casa foi também o fato de o clube da cidade de Rio Claro, no interior paulista, ser pioneiro em lançar uma campanha pelo fim do preconceito de gênero no futebol.

Criada pelo publicitário Rafael Porto em 2017 (leia artigo a seguir), tinha, nas palavras dele, o objetivo de intensificar o futebol como meio de inclusão e não de segregação. “Ficamos chateados, pois sabemos que a luta contra o preconceito no futebol é um trabalho de formiguinha e não vai ser resolvido pelas atitudes de um time, um torcedor, uma torcida, mas a sociedade inteira precisa participar desse trabalho para que o resultado seja alcançado”, completa.

Recentemente, outras campanhas voltadas ao combate ao preconceito de gênero foram lançadas. O movimento #FutebolSemPreconceito, contra a homofobia em campo, teve início com a ação inusitada da LiGay (maior liga de futebol LGBTQIA+ do mundo) e da AlmapBBDO, vestindo a estátua do Pelé com a camisa 24 na madrugada do dia 16 de janeiro. Popularmente, o número 24 é tido como o “número do veado”, em alusão ao jogo do bicho.

Na esteira dessa primeira ação, até agora os times do Bahia, Flamengo, Fluminense (com os jogadores Flávio Medeiros, Gabigol e Nenê, respectivamente) adotaram a camisa 24 em campanha patrocinada pela marca de cerveja Brahma, no início da semana passada. O Corinthians também anunciou que usaria a 24. O jornalista esportivo Mauro Beting lançou a hashtag PedeA24, também na última semana, em campanha para a revista Corner, o que foi replicado por outros nomes do jornalismo esportivo.

Para Luiz Sanches, CCO & Chairman da AlmapBBDO, “é incrível ver uma iniciativa como a do #FutebolSemPreconceito reverberar e inspirar outras ações semelhantes para outros times de futebol a favor da diversidade em campo. Quando os esforços se somam, os resultados concretos logo aparecem. Futebol e sociedade só têm a ganhar com essas movimentações”.

Já o presidente da LiGay no Brasil, Josué Machado, acredita que “ver outras ações acontecendo e os atletas usando a camisa 24 nos faz ter a certeza de que estamos no caminho certo. Que possamos ver cada vez mais equipes pelo Brasil adicionando essa numeração aos seus times.”

“Essa é uma campanha a favor do respeito a todos e todas que queiram viver o futebol sem barreiras. A Brahma é parceira do futebol brasileiro e de grandes clubes do país e se associa nessa luta para que todos os clubes também vejam neste movimento um passo definitivo para acabar com o tabu em torno do número 24”, diz Gustavo Castro, diretor de marketing de Brahma.

Machado complementa, “como qualquer outro indivíduo, uma pessoa LGBTQIA+ gosta de futebol, tem a paixão por seu time e ama esse esporte. Mas, infelizmente, muitos têm o direito de ir ao estádio tolido por um ambiente preconceituoso. Queremos que as pessoas se informem mais, sejam menos preconceituosas e os clubes e atletas possam ter voz ativa na luta por direitos iguais. Lembrando que um número de camisa não determina a sexualidade de ninguém e muito menos as habilidades técnicas. Se o Pelé tivesse usado a camisa 24 em vez da 10, ainda assim ele seria o Pelé, o maior jogador de todos os tempos. Foi pensando nisso e nos casos de homofobia no futebol brasileiro que resolvemos fazer a campanha #FutebolSemPreconceito, colocando a camisa 24 na estátua do Pelé”, finaliza Machado, que já atuou profissionalmente como jogador e treinador em times de base.

“O preconceito em torno do número 24 é uma grande bobagem que já passou da hora de ser ultrapassada. Precisamos desmistificar isso e aproveitar para debater a intolerância no futebol”, destacou o meio-campista Flávio, que vestiu a camisa 24 pelo time do Bahia.

Mas casos de homofobia como o de Santos mostram que o caminho para acabar com o preconceito de gênero ainda é longo. No fim de agosto passado, durante a partida contra o São Paulo pela séria A do Campeonato Brasileiro, em São Januário, torcedores do Vasco cantaram uma música em que chamavam a equipe adversária de “time de veado”. Uma semana depois, em novo jogo do time carioca, outro caso chamou a atenção. Dessa vez, na torcida do Cruzeiro, no Mineirão. Episódios como esses, infelizmente, ainda são muito comuns no futebol.

Marketing social nas causas de inclusão

Como um clube da 2ª Divisão do futebol paulista tornou-se pioneiro em campanhas contra o preconceito de gênero

Por Rafael Porto*

O marketing social existe desde que o mundo é mundo, nem sempre com esse nome, mas continuamente a fim de acabar com problemas sociais, principalmente relacionados ao trabalho, saúde pública, educação etc. Por isso, esse é um movimento muito importante que pode mudar hábitos de consumo, até mesmo do time que você torce.

Um exemplo escancarado no futebol é o preconceito racial e homofóbico. Quem é que nunca ouviu torcidas xingando jogadores, técnicos, juízes, com palavras de ódio que nem devemos citar para não propagar ainda mais?

Diante disso tudo, em 2017, à frente da comunicação social do Rio Claro Futebol Clube, time do interior de São Paulo,  no tempo em que o tema ainda era um tabu, fui idealizador da primeira campanha do Brasil contra a homofobia no futebol. A iniciativa, que contou com o apoio de alguns coletivos de torcedores do clube (outros se opuseram) era, através da campanha, tornar do clube o mais gay friendly do país, intensificando o futebol como um meio de inclusão e, claro, por consequência, projetar o time (e seus patrocinadores) da região através de repercussão midiática que prevíamos.

Mesmo com todo esse projeto de combate à homofobia, no último dia 2 de fevereiro, o goleiro Dheimison, do Rio Claro, foi alvo de ofensas desse tipo gritadas pela torcida da Portuguesa Santista, no confronto que foi realizado no Ulrico Mursa, em Santos, pela Série A2 do Campeonato Paulista. O caso foi tão grave, que teve intervenção do árbitro, que precisou paralisar a partida. Além dos xingamentos homofóbicos, torcedores ofenderam a família do profissional.

Infelizmente esse preconceito que ronda toda a nossa sociedade, que é um crime e existe punição pelo Código Brasileiro de Justiça Desportiva (CBJD), ainda acontece com muita frequência nos estádios.

Tratando-se de um tema tão delicado, abordado pela primeira vez por um time de futebol, sabíamos que ao iniciar a campanha, através de uma publicação nos canais digitais do clube, o alcance seria grande, e assim aconteceu. O Rio Claro FC experimentou pela primeira vez do fenômeno viral que os canais digitais proporcionam e o clube, que antes só tinha espaço em canais do interior, passou a ser disputado por veículos de todo o Brasil e do mundo.

O saldo melhor da campanha e de sua repercussão foi sem sombra de dúvidas termos dado o primeiro passo na desconstrução de um preconceito enraizado no futebol ou, pelo menos, termos aberto o debate para tal. Todavia, vale destacar tudo de positivo que coletamos com tal feito. O clube viu um crescimento de mais de 1.000% de público em suas redes sociais, um alcance (na casa do milhão) jamais imaginado para sua comunicação e, o que consideramos como principal no âmbito estratégico, engajamento.

Após esse primeiro passo, outros clubes, jornalistas e pessoas ligadas ao futebol também criaram movimentos de combate à homofobia no futebol e nos estádios. Como é o caso do Bahia, que lançou recentemente uma campanha pela mesma causa: o destaque veio do volante Flavio, que vestiu a camisa 24 para apoiar a causa.

Ainda bem que isso vem acontecendo, porque a sociedade está mudando há algum tempo e questões relacionadas as minorias sociais são abordadas cada vez mais e estão sempre em evidência por lutarem contra o preconceito. E o futebol, que culturalmente é tido como um esporte machista, também precisa mudar. Mulheres, homossexuais e todas as pessoas podem e estão inseridas nesse ambiente, então essa luta é muito importante.

O público demanda por organizações que se engajam em causas sociais semelhantes às suas. Contudo, nota-se que há um movimento de percepção sobre o impacto das iniciativas que indica que, para o povo, engajamento deixou de ser observado apenas na comunicação e seus efeitos. As pessoas de hoje demandam o real envolvimento das organizações.

O objetivo de campanhas como esta é intensificar o futebol como meio de inclusão, não segregação. Ficamos chateados, pois sabemos que a luta contra o preconceito no futebol é um trabalho de formiguinha e não vai ser resolvido pelas atitudes de um time, um torcedor, uma torcida, mas a sociedade inteira precisa participar desse trabalho.

*Rafael Porto, publicitário e especialista em marketing estratégico, criou a primeira campanha contra homofobia no futebol. Atualmente é head de marketing da MAXI Áudio,Luz e Imagem