Sabe aquele assunto que a gente tem na família que ninguém quer falar sobre? Todos fingindo que está tudo bem, deixando como está, até que um dia a coisa vira um câncer? Pois é, mas eu quero viver bastante. Está na hora de termos uma conversa, caro mercado publicitário.
O momento pelo qual nosso país passa está escancarando feridas que, aos poucos, vão nos mostrando que a pior crise não é econômica: é de valores.
Depois do terceiro copo de whisky, as rodinhas das festas publicitárias tornam-se uma espécie de divã. A maior lamúria em tempos de crise é a de que “o mercado é prostituído”. Não. O mercado é estuprado. Prostituta não trabalha de graça.
Pagar um fornecedor para produzir um job tornou-se quase um disparate. Hoje é tudo na base da “oportunidade”. “Faz esse aí pela parceria. Pela oportunidade. Pra gente te passar mais trabalho depois”. Sejamos francos. Oportunidade virou oportunismo. Mas isso não é de agora. No começo da minha carreira, uns 12 anos atrás, eu aceitei uma vaga de estágio em uma grande agência, pela oportunidade. Oportunidade da agência remunerar um ser humano com meio salário mínimo, virando madrugada todos os dias.
Talvez esse estupro diário justifique a psicopatia que assola tantos profissionais que, em suas timelines, mostram-se tão gentis e preocupados com o futuro dos golfinhos, em contraste com os e-mails que partem de suas caixas de saída, verdadeiros vômitos de ódio, rancor e medo. O medo é o motor. E admito, é um instrumento lucrativo. O medo de perder o emprego, de perder o status, o medo das consequências de se assumir os próprios erros transforma a sociedade em uma usina de pequenos tiranos. E a publicidade é o ambiente perfeito para a tirania prosperar. Escorados pela muralha de glamour e poder de uma grande corporação, contratantes tratam seus contratados como se fossem senhores de engenho com seus escravos. Ou, para ser mais atual, como donos de confecção e seus bolivianos.
É um perverso efeito dominó. Pressionados pela especulação econômica, acionistas ameaçam os CEOs das empresas, que ameaçam seus diretores de marketing, que ameaçam os manda-chuvas das agências, que ameaçam seus subordinados, que ameaçam seus terceirizados, e assim as cabeças seguem rolando. Quanto mais na ponta do processo você estiver, maior a chance de se queimar. E se você for pequeno ou não tiver bala e nem estômago para aderir aos jogos de sedução e corrupção que rolam por aí, então você está lascado. “Tem que jogar o jogo, não tem jeito”. Por muito tempo, essa máxima justificou toda a falta de ética que existia por baixo dos panos. Mas a crise fez o tabuleiro virar.
Quem se gabava de comer filé, hoje tem que achar um espaço para dividir o osso. A fonte está secando para todos. O que nos coloca em um momento único de oportunidade. No sentido real da palavra. Em tempos de vacas magras, o canibalismo não é uma opção inteligente. Em vez de nos sujeitarmos a baixar cada vez mais o nosso valor, aceitarmos as ridículas condições de pagamento impostas, acatarmos a todos os chiliques de um cliente mimado, podemos começar dando um simples passo: sermos fiéis a nós mesmos, durante o expediente. Sermos aquelas pessoas gente finas que somos com os nossos amigos, mas que não passam por cima de seus próprios valores para agradar alguém.
Está na hora de compreendermos que somos todos parte de um ecossistema, em que cada peça tem uma relação simbiótica uma com a outra. Não existe superior ou inferior. É uma roda. Funcionário não é vassalo, o chefe “idiota” talvez tenha uma visão mais ampla que a sua e a empresa em que você trabalha, por pior que seja, paga o seu salário. Por mais que vivamos tempos difíceis, levantar da cama e trabalhar é sempre uma escolha. E se você escolheu ser infeliz, não desconte sua frustração nos outros. Diga não, peça demissão, vá empreender e fazer do seu jeito. Só não tome o papel de vítima. Se o mercado está assim, se a economia está assim, é culpa da Dilma e culpa minha e sua, que somos omissos e coniventes com um mercado de relações doentias, porque precisamos pagar o aluguel, a prestação do carro. Mas dinheiro não compra ética nem lugar no céu.
Independentemente do que você acredita, todo jogo muda as regras. Toda roda gira. Todo aprendizado vem pela dor ou pelo amor. Façamos nossas escolhas. Boa crise a todos.
André Castilho é CEO e roteirista da La Casa de la Madre