O ano de 2016 não foi bom para o Brasil, em vários aspectos. Mas, no Cannes Lions Festival, o país manteve seu destaque com a conquista do do título de Agência do Ano pela AlmapBBDO, apesar de ter tido o número total de Leões, 90, menor do que os 108 do ano anterior. Em setembro, contudo, um brasileiro, José Papa Neto, assumiu a direção geral do festival e tem, entre seus objetivos, incrementar ainda mais o prestígio brasileiro em Cannes. Nesta entrevista, o executivo, que no fim do ano fez sua primeira visita oficial no cargo ao Brasil, fala sobre a importância do país para o evento e sobre como inovar respeitando a “santidade do Leão”.

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No mercado, fala-se muito sobre o tamanho que Cannes atingiu nos últimos anos, inclusive que esse aumento teria comprometido o critério dos julgamentos. Isso influenciou na decisão por diminuir o número de jurados para este ano?

Um dos principais motivos para a mudança é a consciência de que tudo gira em função da santidade do Leão, do resguardo ao valor do Leão, daquilo que significa nosso legado. O festival cresceu muito, cresceu muito rápido, inclusive em número de jurados, e muitos júris perderam a eficiência, os debates, o apuro técnico, a capacidade, o critério de avaliação. Então, a gente precisava, até como parte desse processo de resguardo do valor do Leão, decidir tudo em relação à qualidade, ao maior apuro mesmo. Assim, cada um dos jurados no futuro entenderá que o processo é ainda mais seletivo, que a qualificação é ainda maior e que o resultado final deve ser de maior profundidade. Tudo gira em função de qualidade e de credenciar o valor do legado que é julgar em Cannes. O processo sempre foi absolutamente criterioso. Mas é natural que se você gerenciar o apuro você consegue ter melhora. Nós nos conscientizamos que tínhamos de definir um critério de qualidade ainda mais primoroso, ainda mais porque em nenhum momento, mesmo com o crescimento do festival, a gente perdeu aquilo que é a essência, a qualidade. Mas acredito que o número menor nos permite aprimorar ainda mais esse processo.

Em alguns casos não pode fazer falta mais jurados, como quando Domenico Massareto defendeu a importância de Ayrton Senna na cultura brasileira e, assim, conseguiu reverter uma decisão do júri e garantir um prêmio para o case O Coração do Brasil em mobile?

Não, pelo contrário. Para nós, um dos modelos é Titanium, que é nosso júri menor, com um número menor de pessoas e em que a gente consegue enxergar maior acurácia em termos de discussões e debates. Acho que isso gera um compromisso ainda maior, um nível e aprofundamento de debate maior também. Essa foi uma das primeiras decisões em que me envolvi bastante, exatamente por sinalizar para o mercado que a gente está escutando o que acontece. A gente entende o movimento de “está ficando muito grande, tem muita gente”. Por isso até que a gente está mantendo o número de categorias. Não estamos adicionando nenhuma categoria. É uma fase de consolidação.

Essa foi uma das primeiras mudanças… e os próximos desafios?

E é um desafio importante, porque não foram poucas mudanças. Nos últimos três anos, adicionamos novas categorias e foi isso que permitiu a gente crescer, porque não deixa de ser uma operação que, sim, visa o crescimento. E meu desafio agora é não contar com isso. A gente vai crescer organicamente, consolidar, fazer com que a proposta de valor de cada categoria seja ainda melhor reconhecida. Vamos continuar apoiando e definindo o modelo de valor que existe.

Como isso será feito?

Eu tive o privilégio de entrar dia 1º de setembro, quando tivemos nossa primeira apresentação de conselho, o que me deu um mês para mergulhar numa visão para a missão de futuro. E a gente fez um ajuste sutil, mas um ajuste superimportante para nossa missão. A missão era mais em função de consolidar a semana como o centro da criatividade global. E Cannes Lions deve, sim, ser o centro da criatividade global. A semana é o epicentro, o momento maior, o momento de fechamento e início de ciclos, de renovação, de reciclagem, mas o engajamento com a nossa comunidade ocorre durante todo o ano, por inúmeras e diferentes experiências que a nossa comunidade pode vir a ter conosco. O nosso primeiro pilar é a criação de uma comunidade engajada com o Cannes Lions o ano todo e o conceito de membership. Isso é uma visão de futuro. E o que significa ser um member de Cannes Lions? A experiência começa muito antes e continua muito depois. Nossa ideia é ter uma rede de embaixadores que estimule esse tipo de debate, de crescimento, de aprendizado com a nossa comunidade para essa pessoa começar a experiência com Cannes Lions muito antes da semana. E aí o member já vai ter se conectado com uma série de pessoas, definido os seus interesses, os objetivos de discussão e as parcerias muito antes de Cannes. É extrapolar o conceito da nossa representação somente durante a semana, que continua a ser o momento que recicla e renova.

Quando esse conceito de membership deve ser implementado?

A gente começou a implementar, já estamos trabalhando com algumas iniciativas. Por exemplo, nós estamos entrando com uma oferta bastante agressiva para os Young Delegates. Para aqueles com menos de 30 anos, a gente reduziu em 10% o preço da inscrição tendo como único propósito o de construir uma nova geração de Cannes, de pessoas que se envolvam conosco. Essa é uma missão de longo prazo, mas que já começou com algumas iniciativas. A gente pretende ainda ter pequenos núcleos de debates com pessoas bem relevantes, do porte dos nossos jurados, que serão realizados em Nova York, Londres, aqui. Assim, uma pessoa que vai pela primeira vez para Cannes e não sabe o que é a experiência, pode sentar com um diretor global de uma grande marca e ter uma sessão de direcionamento, junto com outras pessoas que vão pelo primeiro ano. Isso é apenas hipoteticamente uma ideia do que podemos fazer para que essa relação comece muito antes. Exatamente para mostrar que a visão da proposta é de futuro, de inovação para o futuro, de inspiração para o futuro. Não estamos só celebrando em retrospecto, e isso vai ser uma parte muito importante de como vamos direcionar essa mensagem: a de que na nossa plataforma você consegue se inspirar para ser mais visionário.

De que forma isso será trabalhado na programação da semana, em termos de inovação e tendências?

A transformação do festival nos últimos dez anos foi gigantesca. Nós passamos a realmente balizar aquilo que vai ser realizado no futuro. Muitas das iniciativas que a gente tem, das palestras, do engajamento que a gente oferece, é em relação ao futuro, de inspiração para futuro, de visão de tecnologia, visão criativa, ad tech e big data. Mas a mensagem ainda não é aderente para todos e esse é um dos grandes desafios: mostrar que, sim, nós celebramos em retrospecto, mas a essência de Cannes é inspiração para o futuro, é a visão. Temos muitas novidades, mas não posso adiantar ainda para não quebrar o elemento surpresa. Tem umas coisas muito loucas vindo, loucas no bom sentido, de experimentação, tecnologia. O maravilhoso de Cannes é que gente obviamente consegue ter a essência dos principais temas e pode até trabalhar e definir o que será abordado, mas aquilo que o mundo traz para nós é de uma riqueza tão grande que a dificuldade maior é exatamente curar, é não conseguir ter espaço físico para alojar tudo que a gente recebe, todas as ideias que a gente imagina mostrar. Tem muita coisa legal vindo.

Como você avalia o desempenho do Brasil na competição do último ano?

O Brasil, o que não é uma surpresa para ninguém, dada as circunstâncias, decresceu bastante, mas mesmo dentro deste cenário o país continua sendo um dos principais mercados para nós. Ele era nosso segundo principal mercado, agora é o terceiro. Mas, mesmo sendo o terceiro, é um enorme mercado. Por isso, independentemente de eu ser brasileiro, qualquer pessoa que estivesse aqui na minha posição teria o Brasil como prioridade. Qualquer estudo estratégico que foi feito, inclusive pós 2016, envolveu sempre o foco absoluto no Brasil. Os três principais mercados são Estados Unidos, UK e Brasil.

E para 2017, qual sua expectativa para o país dentro do festival depois de todas essas mudanças?

Acho que o Brasil vai viver ainda muitos problemas, mas tudo depende de como a gente calibra a mensagem. Eu acho que transformar de novo a participação do Brasil em Cannes, trazendo o país para os patamares históricos, é totalmente factível com quem se engaja e entende realmente nossa proposta de valor. Cannes é mesmo investimento, não é custo. Quem for pra Cannes deve ser muito bem monitorado, pois cada pessoa que a empresa realmente resolve investir para mandar para o festival deve trazer um retorno mensurável do investimento. Cannes não é a expectativa de ir para a praia e beber vinho rosé. E de novo eu falo, sem viés, que nós temos condições de ser uma alavanca para mudar esse cenário. Sou suspeito porque, como todo brasileiro, tenho essa essência de otimismo nato, mesmo num cenário de pessimismo que eu jamais testemunhei. Acredito que havendo o mínimo de serenidade, de estabilidade institucional, o Brasil tem total condição de voltar aos patamares históricos, porque aqui se compreende muito a essência do valor do retorno sobre o investimento que Cannes traz. 2017 certamente será um ano bem melhor que 2016.

Você já comentou em outras entrevistas da boa relação com Philip Thomas, ex-CEO do festival, e de todo o apoio que recebe dele. Mas qual é seu objetivo pessoal nessa nova gestão?

Primeiro, como eu falei, é honrar o legado, ser bastante honesto com relação ao presente, mas também ser muito dinâmico. São três h: honor de legacy, honest about the present e hopeful about the future. A ideia é balancear esses três. Sendo uma voz nova, externa, espero poder ser de fato bastante transparente com relação aos nossos desafios. O privilégio de entrar novo é poder questionar aquilo que a gente faz, se está certo, se não está, mas sem perder a essência. Tenho o privilégio de trabalhar nessa transição com Phil, porque se ele tivesse saído e eu não contasse com a experiência dele, seria um processo muito mais difícil, sofrido, muito mais lento.