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Tomar contato com o Relatório das Tendências Emergentes em Ciência e Tecnologia, da futurologista americana Amy Webb, é para os fortes. A cada ano, nos últimos 12, ela e sua equipe do Future Today Institute divulgam o resultado da análise de uma infinidade de dados pesquisados sobre a evolução da tecnologia e diferentes pesquisas científicas e como influenciarão negócios, governos, educação, mídia e sociedade nos próximos anos (o relatório completo pode ser baixado aqui).

Na reflexão que propôs em sua disputadíssima sessão no SXSW 2019 em Austin, Texas, no último sábado, dia 9, um auditório com cerca de duas mil pessoas se viu obrigado a pensar sobre questões que parecem tiradas de um filme de ficção científica. Webb partiu da inegável realidade: não existe mais privacidade. Nossa biometria vem sendo escaneada nos celulares, nas portarias, carros, aparelhos eletrodomésticos, simplificando nossa vida por meio de reconhecimento facial, de voz, impressão digital, íris ocular, frequência cardíaca e até nosso gestual, a cada lançamento de um novo device. O refinamento e a otimização dos nossos dados biológicos em tempo real ajudam sistemas de inteligência artificial a aprender, categorizar e reportar informações sobre nós, o tempo todo – os chamados Sistemas de Reconhecimento Persistentes.

Isso levanta, segundo Amy Webb, questões sobre quem armazena e trata estes dados: a quem pertencem nossas informações biométricas? Devemos ter o direito de manter privacidade sobre nossas emoções, estado mental e outros detalhes biométricos, fora do alcance dos Sistemas de Reconhecimento Persistentes? As corporações são capazes de usar todos estes dados de forma segura e ética? A quem pertence de fato o nosso DNA? Podemos patentear nosso DNA para que ninguém o copie ou utilize? Se tecnicamente não somos donos do nosso DNA, então a quem pertence o nosso corpo e tudo o que está nele?

Respira. Acha que ela foi longe demais? Nem tanto. Seu estudo aponta este cenário já em 2034, logo ali. Se fizermos a mesma análise, mas substituindo os dados biométricos pelo nosso comportamento online, concluímos que já estamos fornecendo para centenas de empresas a cada minuto uma série de dados sobre nós, tornando-as capazes de mapear nossa rotina, conhecer nossas dúvidas, anseios e angústias, o que estamos consumindo, o que estamos lendo, assistindo e ouvindo, o que achamos de determinado restaurante, nossa localização em tempo real e para onde vamos nas próximas férias. Todos estes dados, intercambiados e tratados por algoritmos já não são Sistemas de Reconhecimento Persistentes que nos apresentam ofertas de preços, produtos, serviços e conteúdos absolutamente personalizados?

Graças ao que a inteligência artificial (expressão mais falada durante o SXSW!) é capaz de fazer com todos estes dados, estamos transformando o jeito como comunicamos marcas e corporações. E sem dúvida nossas campanhas estão ficando cada vez mais eficientes (os analytics estão aí que não nos deixam mentir). Mas como alertou Amy Webb à mesma plateia, isso tudo pode ser incrível ou catastrófico, dependendo da ética e responsabilidade com que fizermos os robôs trabalharem esses dados.

A questão permeou várias discussões nos dias que se seguiram no festival. 24 horas depois da palestra de Amy Webb, a política dinamarquesa Margrethe Vestager, comissária para Concorrência da União Europeia, alertou em seu painel sobre os riscos do mau uso dos dados: “só podemos desfrutar das promessas da tecnologia se pudermos confiar em quem está por trás dela”. Vestager criticou duramente a falta de transparência por parte das gigantes tecnológicas, como Amazon, Google, Apple e Facebook, cujos maiores ativos são justamente os dados gerados constantemente por bilhões de indivíduos no planeta que interagem em suas plataformas, verdadeiras caixas pretas. Ao perguntar para a plateia quem achava que as gigantes tecnológicas precisam de maior regulação, deparou-se com um auditório de mãos levantadas. “Se quisermos ter um mercado dinâmico, teremos de conceder o acesso aos dados para cada pessoa, e não deixá-los sob a guarda dos gigantes da tecnologia”, concluiu.

O tema seguiu quente no Centro de Convenções de Austin, e poucas horas depois de Vestager, foi a vez de Roger McNamee, mentor de Mark Zuckenberg no início da carreira e investidor do Facebook. Ele acaba de publicar o livro Zucked: Waking Up to the Facebook Catastrophe, em que alerta para a necessidade urgente de Facebook e as outras gigantes reverem seus modelos de atuação, sob o risco de vivermos como escravos em suas plataformas, à custa de competitividade, privacidade e liberdade em sentido amplo. “O que precisa mudar é o modelo de negócio de todas essas empresas, baseado em vigilância constante e monetizando cada informação coletada de nós sem que tenhamos a menor ideia disso”.

O primeiro passo para regular a privacidade e acesso aos dados foi dado com a aprovação da GDPR (General Data Protection Regulation) pelo Parlamento Europeu em abril de 2016, lei que foi endurecida em maio do ano passado e inspirou a Lei Brasileira de Proteção e Tratamento de Dados Pessoais, sancionada em agosto. Mas ninguém sabe ainda como os direitos garantidos por estas leis serão exercidos na prática. Escritórios de advocacia e consultorias estão debruçados sobre elas, que impactarão praticamente todo e qualquer negócio, já que todos vivemos numa economia digital. No Brasil, a lei só entra em vigor daqui a um ano, até que os impactos estejam minimamente mapeados.

O espírito por trás da regulação é a responsabilidade que deve acompanhar o sucesso das empresas no mundo digital. Como disse Margrethe Vestager, “as pessoas precisam ser responsáveis pelos resultados dos algoritmos que criam. E ser responsabilizadas, caso este resultado provoque estragos”.

Ela não está falando só das tech giants. Qualquer start up, agência digital ou fintech precisa estar atenta ao tamanho da sua responsabilidade e agir hoje de forma ética para que a probabilidade de o futuro ser incrível supere de longe a de ser catastrófico.

Roberta Machado é CEO da In Press Porter Novelli