Eu tenho a sorte de ter em casa um ser humano excepcional. A desgastada expressão “alma da casa” pode ser empregada, sem nenhum medo, neste caso. Estamos há mais de 20 anos juntos e, já que perdi a vergonha dos lugares comuns, me permitam dizer que agradeço a Deus por ela ter resolvido dedicar-se a mim e à minha família com tanta delicadeza e entrega. Cozinhamos juntos, quando resolvo diminuir a qualidade do passadio doméstico. Nessas deliciosas ocasiões, com vocação para diplomata, jamais aponta meus erros, mas sempre dá um jeito – sem me constranger – de indicar qual foi a besteira que fiz. E, discretamente, corrigir. É também veterinária, como se pode notar pela saúde da bicharada, que lhe dedica um amor sem limites, embora respeitoso. Nunca presenciei qualquer agressão a nenhum deles, nem às galinhas. Ela consegue dialogar, por mais absurda que possa ser esta afirmação, ou seja, prefere convencer gatos e cachorros a se comportarem de forma civilizada do que se impor com gritos ou ameaças. Nenhum faz parte de torcida organizada, por exemplo, nem tem qualquer tipo de preconceito de gênero, número ou grau, espero que me entendam.
Algumas vezes acho que esta boa índole deles poderia ser um pouco menor, para que pudessem agir com mais rigor nas duas vezes que a casa foi assaltada. Mas prefiro um alarme eletrônico do que um maluco mordendo ou dando unhadas nas pessoas. Seu lado científico fica claro quando consegue interpretar um cocô animal como se fosse técnica de laboratório. Afirma, depois de observar o aspecto da obra, que o bicho deve ter comido isto ou aquilo ou – o que é mais comum – “seu Lula continua dando besteira para eles comerem!”. Com a casa considerada lotada (galinhas, três gatos, dois cachorros e um diretor de criação) acolheu uma gata vadia literalmente jogada fora por alguns desalmados. Com receio de que pudéssemos não querer mais nenhuma alma irracional, cuidou do filhote até achar que ele pudesse lutar pela sua inclusão. Depois foi-nos apresentando aos poucos. Como nossos gatos são negros e a gata malhada de branco, criou um inédito sistema de cotas em toda a fauna. Conseguiu o que queria. A gata é amiga pessoal de minha mulher, mas não conseguiu deixar de ganhar um nome estranhíssimo para um gato: Clandestina. Nome que ela reconhece como dela. Quando tem vontade, como qualquer gato que se preze.
Ela é minha afilhada de casamento, uma das poucas cerimônias que usei terno no calorão de 40 graus do Rio de Janeiro. Embora tenha passado dos 50, achou que estava correndo risco de ficar solteirona e fez absoluta questão de botar tudo em pratos limpos, ou melhor, em cartoriais papeladas. Conseguiu. Quando resolve fazer algum prato especial, vai ao telefone e, por conta própria, convida meus amigos que ela sabe que adoram aquela comida, para virem a minha casa. Ops! A casa dela, claro. Assim quando vejo sendo preparada uma rabada com polenta, um escondidinho, uma galinhada ou uma moqueca, intuo que teremos companhia no almoço ou no jantar. Como são pessoas que amo, junto a fome com a vontade de ver amigos, jamais fiz qualquer comentário que pudesse cercear seu sagrado direito de cozinhar feliz. Se qualquer um dos meus filhos leva alguns dias para me visitar, preparam uma desculpa para ela, não para minha mulher ou para mim, pois é dela a bronca mais direta.
Outro dia dei para ela o livro Essa Menina, de Tina Correia, e seus comentários foram dignos de crítico literário. Ou muito melhores, pois foram comentários de quem entendeu o livro, que se passa numa cidade do norte/nordeste fictícia, mas que poderia estar em qualquer lugar do topo do mundo. Tina se encantou com a agudeza do seu comentário e escreveu uma dedicatória toda especial, que fez questão de entregar pessoalmente. Gosta muito de mim, eu sei disso e ela demonstra, embora ache que eu falo palavrão demais e bebo acima do razoável. Estou agora aqui no meu escritório doméstico, escrevendo a coluna. Não sei por que acho que o barulho das panelas que vem lá de baixo fazem um som muito parecido com a música Se todos fossem iguais a você. Um beijo, minha afilhada e amiga Maria do Amparo.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)