Depois de 21 “obscenos e indulgentes anos” na DPZ, como ele próprio diz, Carlos Silvério teve de morrer um pouco para renascer em um novo mercado, transformado e bem distante de tudo vivido até então. Neste 

bate-papo, Carlão passa em revista a sua história profissional, boa parte vivida ao lado de Francesc Petit, com quem aprendeu quase tudo, dentre as quais “tratar marcas com uma devoção, uma dedicação e uma responsabilidade sagradas”. De lá para cá, foi parar na liderança criativa da Geometry, uma agência de ativação por excelência, e com uma “rebeldia crônica” que invariavelmente leva a novos caminhos, novas soluções.
No cenário de queda das catedrais hegemônicas da propaganda e novos formatos de agências e de negócios dos clientes, Carlão se entusiasma
com o desafio da revolução digital que virou o mundo de ponta cabeça.
“A trincheira é boa. A batalha me mantém vivo. Não quero e não vou sair
(da propaganda) tão cedo”, diz.

 

Carlão, o que faz você levantar da cama todos os dias para trabalhar em propaganda? O que ainda o encanta na profissão?

 

Esta pergunta, parece, está pedindo uma resposta romântica. Está bem, chegarei lá também. Mas seria um pouco hipócrita não admitir que a necessidade me faz acordar e trabalhar, sim, todos os dias. E aproveito e já aviso o mercado: tenho de trabalhar pelo menos uns dez anos ainda. Não recebi herança e nem fiquei rico. Preciso trabalhar. E isso, acho, é um privilégio; preciso pagar as despesas da vida. Isso também me mantém vivo. E isso é uma parte importante. Agora, a boa notícia é que gosto de trabalhar, gosto do meu trabalho e, ao que parece, este trabalho também gosta de mim. E ainda posso ganhar para ser quem eu sou, como sou, para usar coisas que eu gosto e sei fazer. Sofro, é difícil, muitas vezes insano e quase impossível. E há momentos gloriosos, mágicos, até triunfais. Trabalhar me deixa feliz. O que ainda me encanta? A possibilidade eterna de ainda encontrar um desafio maior, melhor, mais incrível do que os que eu já vivi. E, como na vida, a busca por momentos bons. Acordo porque gosto do prazer do ofício, da arte, da conversa, da troca, às vezes radicalmente técnica, resolver problemas, ensinar, contribuir, aprender, dividir experiência, dar um norte para as pessoas, tentar inspirá-las, tentar interferir no destino de uma marca. O reconhecimento de um cliente é uma das minhas maiores motivações, se não a maior; saber que ele faz questão absoluta da minha presença numa reunião, num workshop, que quer ouvir minha opinião sempre, que ele se importa comigo e com o que eu queira dizer é magnífico. Muitas razões boas. Além disso, encarar alguns desafios internacionais são hoje, também, incluo, um dos meus maiores estímulos. Um projeto internacional, como já fizemos com equipes de Londres, Canadá, Japão, América Latina, Cuba. Levar o que aprendi aqui para outros lugares e trazer de lá outros tantos aprendizados. Crescer com o diferente, o novo. Achar o diferente no igual, o igual no diferente. Mas cada dia há uma nova ou boa razão para sair da cama. Mesmo nos fins de semana.

 

Como vê as pessoas da sua geração que abandonaram o barco? Já pensou em fazer isso?

Qualquer um que tenha mais de 10 anos de profissão certamente já pensou nisso. Mas eu não os invejo. Não troco. Estou feliz na ativa. É onde quero estar. A trincheira é boa. A batalha me mantém vivo. Não quero e não vou sair daqui tão cedo.

 

O que você sonhava em ser quando crescesse? Na infância, e na adolescência?

Nunca tive uma visão muito clara disso. Sempre desenhei muito e virar algo ligado a desenho parecia ser mais que desejável, inescapável. Lembro-me de sonhar em ser um artista muralista, um pintor muralista. Como os grandes muralistas mexicanos. Lembro-me de ver as obras de Clemente Orozco, Diego Rivera, David Siqueiros e ficar impressionadíssimo. Queria virar um deles. Claro que, bem antes disso, ver Michelangelo e até mesmo Portinari me deu esta imagem de que um grande artista, trabalhando em escalas monumentais, estaria numa espécie de ápice, de plenitude profissional. Um delírio de criança. Mas é curioso realizar agora, enquanto respondo esta entrevista, que eu, já um profissional de propaganda, na época que ainda tínhamos os outdoors de rua, de uma certa maneira, pratiquei, digamos assim, um certo muralismo, esta coisa de grandes formatos, evidentemente guardadas as mais que devidas proporções não de tamanho, mas da diminuta envergadura artística de uma peça publicitária perante uma grande obra de arte. Ainda assim, uma sensação inesquecível aprovar uma campanha e, dias depois, sair de casa, dirigir pelas ruas bem cedo rumo à agência e deparar com um outdoor seu que brotou, lá trás, de um pequeno “rough” da ponta do seu lápis.

 

Como foi parar na faculdade de artes plásticas?

Desenhar nasceu comigo. Inato. Lembro-me de desenhar antes de aprender a escrever. Tenho imagens de estar desenhando antes dos seis anos. Claras. Como se fosse um programa com o qual se nasce instalado. Meio doido. Muito intuitivo, natural. E me ajudou muito a me fazer sentir alguém, numa pré-escola que quase aniquilou minha autoestima. Sobrevivi à desmoralização infantil graças ao desenho. Pré-adolescente fiz um curso de Desenho de Perspectiva. Eu era um garoto numa sala de marmanjos. O professor, um designer chefe do departamento de estilo da General Motors. Um espanhol, Juan Besso Mateo. O primeiro de uma série de espanhóis que iriam impactar minha carreira, minhas escolhas e quem sou hoje. Morria de medo dele, mas fiquei fascinado com os desenhos de uns protótipos ultraestilizados que ele nos mostrou. Aquilo abriu um rombo na minha cabeça e percebi que queria aquilo, ser daquele jeito, trabalhar numa grande empresa, para uma grande marca. Lembro-me de pensar: quero trabalhar num lugar onde as pessoas usem gravata. Gravata como código associado a uma coisa importante, pensando em estar numa empresa poderosa e arrojada. A versão moderna de um artista. A ideia de arte aplicada começou a me fazer um enorme sentido e a ter um apelo irresistível. O segundo espanhol a me marcar foi José Maria Fernandez Garcia, professor de Linguagem Arquitetônica, um curso preparatório para a prova de Aptidão da Fuvest, do cursinho Objetivo. Numa dessas aulas das manhãs de sábado, o Zé Maria nos mostrou, nem lembro por qual razão, uns slides de uns quadros, extremamente gestuais, que aludiam à icônica bandeira amarela e vermelha da Catalunha, de um outro espanhol. O nome dele, Petit.

 

E como foi parar na DPZ?

No último ano da Faculdade de Artes Plásticas sabia que tinha de me mexer, buscar trabalho, um emprego. Na ECA (Escola de Comunicações e Artes da USP), onde estudei, os professores de fato achavam que eu iria virar um artista ou um deles, artistas-professores. Mas queria a tal arte aplicada, nem sabia ao certo qual. A que surgisse. Hoje parece fácil falar daquela época, mas me lembro bem da angústia, do medo de não aparecer nada, coisa alguma. Eis que um dia, numa noite, meu colega de faculdade, o Lollo, o hoje famoso e premiado criativo Lollo me liga. Atendo o telefone laranja de disco na sala de casa e ouço: “oi Carlão, tudo bem? Estou trabalhando na DPZ e aqui no quinto andar estão procurando alguém que faça manchas. Você não quer tentar?” Silenciei. Confesso que não tinha a menor ideia do que era “mancha” e, pior, tampouco sabia qualquer coisa sobre essa tal de, “como é mesmo que se chama mesmo, Lollo, D-P-Z?”

Na mesma semana estava eu, duas e meia da tarde, lá no tal de quinto andar da tal DPZ, sendo entrevistado por um senhor de cabelos brancos, de ar extremamente culto, erudito, incomumente sofisticado: Murilo Felisberto. O Murilo usava gravatas.

 

Você passou 21 anos na DPZ. Como foi para você seguir a vida pós-DPZ, encarando um mercado transformado, onde simplesmente não há mais espaço para uma agência naqueles moldes tão extraordinários?

Pois é, culpa do Lollo, dos três espanhóis, do Murilo e de todos que usavam gravatas. Fiquei obscenos e indulgentes 21 anos lá. Hoje penso e acho ultrajante. Mas não me arrependo. Foi o fim de uma era, de uma encarnação. “Nascer para o novo exige morrer para o velho” me disse, profético, o talentoso Rodrigo Leão, redator da minha equipe. Sábio esse Rodrigo. Eu estava saturado da publicidade, no sentido convencional. Estava alérgico com a ideia de começar uma reunião para um cliente e ver, pela trilhonésima vez, ver um redator se levantar para contar um filme de 30 segundos e dizer: “bom, este primeiro roteiro se chama Surpresa”, por exemplo. Não aguentava mais. Surpresa era alguém ainda querer ouvir aquilo. Queria pensar diferente. Ainda na DPZ, os dois últimos projetos que fiz me despertaram para uma coisa nova. Um pitch para a Natura, que chamamos de “Natura 21”, deslumbrante e ousado, e um outro para o banco Itaú, visionário, chamado “iConta”. Eram uma outra coisa, uma outra pegada. Outro conceito de pensar, de criar, de desenhar o negócio. Era começar do começo: pensar numa alma e pensar também num corpo. Criar um propósito e embalá-lo. Tudo isso, tudo novo. Do zero. Da raiz, da semente. Mídia, que mídia? Que anúncio? Que roteiro? Nada disso. Esquece. Talvez nem tenha nada disso. Melhor se não tiver. Melhor ainda se nem precisar. Aliás, talvez atrapalhe. Era isso. Agnóstico, puro, original. Era exatamente isso. Achei (pensei). E sobre aquele projeto “iConta”, não posso não falar e também não perder tempo com modéstia: o grupo que criou proativamente aquele projeto anteviu aquilo que poderia ter sido (se o banco tivesse aprovado 13 anos atrás) a primeira fintech brasileira. Agora é passado. Mas acho que escapei um pouco da sua pergunta. Voltando a ela: sobre os moldes extraordinários da DPZ, sim, sem dúvida, aquilo acabou. Nem ela mesma, a DPZ conseguiu mais ser. Outros tempos. Há outras, hoje, noutros moldes, tão extraordinárias quanto, mas necessariamente diferentes. Morrer para o velho para nascer para o novo.

 

O que você aprendeu de mais importante na DPZ, que levou para a vida?

Em quatro letras: tudo. Tudo o que o Petit me ensinou, sem pensar em ensinar. E tudo o que alguns dos melhores e mais talentosos clientes de lá também acabaram por me ensinar. Engraçado, me ouvindo agora, percebo: nunca se fala que um cliente é “talentoso”. Um erro, pois se devia. Aprendi muito com os piores clientes também. Aprendi a tratar marcas com uma devoção, uma dedicação e uma responsabilidade sagradas. E também criativamente, ousadamente, grandiosamente, desafiadoramente. Aprendi a não aceitar nada menos que o melhor, respeitar o nosso trabalho, dar um valor religioso a ele. Querer o brilho, o criativo, o belo, o novo, o inesquecível, o único.

 

O que aprendeu em especial com o Petit?

Impossível responder nesta revista. Arrume mais três edições para tentar, eu disse tentar, fazer caber a resposta. E só estou falando dele, o catalão. O P., com ele aprendi tudo. Nele encontrei a maior e mais extraordinária referência deste ofício. A fonte mais incrível de inspiração sobre o que é ser um criativo, um publicitário, um diretor de arte, um profissional. Ele sabia tudo da forma mais intuitiva, inata, bruta e genial possível. Indescritível. Lamento por aqueles que não tiveram, mais do que a chance, o privilégio de vê-lo em ação. O Petit tinha aquela capacidade inexplicável de mudar tudo e todos ao seu redor. A gente aprendia com ele até quando ele estava errado. O Petit tinha uma aversão ao medíocre, ao comum, ao ordinário. Ele era capaz de morrer ou principalmente matar para evitar que algo medíocre, mesmo que imprudentemente aprovado pelo cliente, fosse para a rua. Era passional e não raro balístico nessa sua irrefreável determinação. Nada, rigorosamente nada, escapava ao seu olhar implacável. Aprendi a ser irredutível quando a qualidade está em jogo e fazer dela um valor inegociável. Ele nos ensinou que uma campanha extraordinária exige talento, mas exige, principalmente, trabalho. O Petit era um trabalhador. Um operário, impecável, sofisticado, mas um operário. E comandava com mão de ferro um pelotão de fuzilamento de tudo aquilo não estivesse a serviço do melhor. Tolerância zero ao feio, ao preguiçoso, ao malfeito, aos picaretas, aos enganadores. O sísmico e mítico Quinto Andar do Petit. A falha de San Andreas estava sob nós e sobre nós, não raro, a cólera dos Deuses se expressando na franzina figura dele. E o mais lindo de tudo: o mais incansável defensor da Criação, dos Criativos. Um layout tinha status de obra de arte. O Petit nos ensinou a amar marcas e a construí-las de uma forma ampla e plena. A marca como um todo, onde tudo é igualmente importante. Nada é pequeno demais que não mereça a máxima atenção e cuidado. Nisso, foi o melhor.

 

Que campanha mudou a sua vida profissional?

A que mudou, não tenho dúvidas: a campanha “No Limits” para a marca de cigarros Hollywood. Cinco megaproduções onde até mesmo o céu estava bem aquém dos nossos limites. Uma oportunidade única. Na minha vida, um divisor de águas. Definitivamente, meu PhD.

Que campanhas você se orgulha especialmente, ao longo da sua carreira?

De todas aquelas que não me envergonho. Da época de DPZ, gosto de lembrar uma campanha de mídia impressa para o lançamento da MTV, algumas campanhas para a marca Carlton, “Carlton Purple”, com desenhos de Al Hirschfeld, o lançamento completo da Gol Linhas Aéreas, no tão aguardado ano de 2001. A campanha para os 60 anos da Sadia. E os projetos Natura 21 para Natura e iConta para o banco Itaú, que mencionei, ambas nunca aprovadas. E mais recentemente, já na Geometry, o redesenho da marca LUPO, um case para a Nadir Figueiredo, numa campanha, acho eu, exuberante para o Copo Americano. Quase desnecessário dizer, além destes, incontáveis projetos apaixonantes para as principais marcas da Souza Cruz/British American Tobacco, todos fundamentais, que definem por completo quem sou eu nessa carreira.

 

Como foi a sua entrada como VP de criação na Geometry, que tom tem dado para a criação da agência?

A Geometry (G2, à época) foi uma consequência natural. Mais que isso, uma sequência natural. Minha saída da DPZ, fato, provocou alguns clientes. Os telefonemas que recebi, três em especial, emocionantes, estão entre as maiores gratificações que carrego até hoje comigo. Valem mais que áureos Leões de Cannes. Acontece que o Sérgio Brandão, meu ex-parceiro na conta de Souza Cruz na DPZ, liderava, quando da minha saída da DPZ, a G2, então uma agência-braço de “Branding Beyond Advertising” da Grey. Agnóstica em mídia; aliás, mais que isso, “no media”. Mais que decisivo mencionar que dos principais clientes da G2 era justamente a Souza Cruz. O convite então veio. Como não aceitar? Um cliente que eu amava, e ainda amo, num formato de agência que se encaixava exatamente no novo jeito de pensar que eu buscava. De lá para cá, sou VP de Criação. O tom da criação, uma eterna busca, diária, daquilo que aprendi naquela iluminada casa da Cidade Jardim.

 

O que difere de mais fundamental no trabalho que faz hoje, daquele feito naqueles anos 1980 e 1990?

As ferramentas. Aquele mundo não existe mais. E “how fascinating!” viramos cães farejadores, perdigueiros de um consumidor transformado e transformador. Ainda que a verdade fundamental, a essência, não mude. É o que há de eterno. O imutável em meio ao que há, mais que nunca, de eternamente mutante. Não mais anúncios, páginas duplas, filmes de 30 segundos. Em vez disso, ativações, experiências de marca e uma infinidade de outras manifestações e pontos de contato com um consumidor que pouco ou nada tem em comum com sua ancestral versão dos anos 1980/1990.

 

Qual é, na sua visão, o papel que uma agência deve ter, hoje, para empresas anunciantes?

Nada muito diferente do que sempre foi: guardiã das marcas e advogada da vossa excelência absoluta, o consumidor. Este sim, hoje, mais do que nunca o senhor supremo da brincadeira toda. Entender o cliente é pouco, influenciar, mais que nunca, fundamental. Mas, mais, e mais que do nunca, falar, entender, decifrar, interpretar a voz do consumidor. Ouvi uma vez um cliente, na mais singela e ingênua sabedoria, dizer à sua tão astuta agência: não entre tanto, mas tanto no meu negócio a ponto de se parecer comigo. Não é isso o que eu busco, não é isso o que espero de vocês. Espero ouvir de vocês o que não conheço, o que não sei.

 

Que conquistas você citaria no último ano, para a sua agência, seu time, seu trabalho?

Vencer com relativo sucesso um ano difícil, cheio de incertezas, num país atolado em dúvidas, em polarizações, enraivecido, agressivo, hostil, sem otimismo, sem progresso e mesmo assim chegar ao final vivo, inteiro é de se comemorar. Ainda assim fizemos avanços. Globais que somos, ainda mais globais pretendemos ser. O nosso novo ano promete.

 

Que tipo de líder é você? Defeitos e qualidades?

A lista de qualidades e defeitos é rigorosamente a mesma, depende do seu/meu ponto de vista: obsessivo, detalhista, perfeccionista, centralizador, intransigentemente pontual, crítico, apaixonado, disciplinador, um eterno insatisfeito, professoral, um cuidadoso e atencioso ouvinte, atento e exigente, humilde, arrogante, impaciente, educado, apolíneo e mercurial.

 

Que modelo de agência tem a Geometry em SP e como você analisa os diversos novos modelos de agências que se apresentam, como por exemplo o que se aproxima da consultoria?

A Geometry é por definição uma agência de ativação. Mas nossa rebeldia crônica nos faz querer mais que isso. E assim tem sido com razoável sucesso. Na última década (um pouco mais que isso), o mercado mudou radicalmente; afinal, o mundo mudou. A vida, enfim. As catedrais hegemônicas da propaganda fecharam, sumiram, ruíram. E as poucas remanescentes estão em vias de. Novos formatos de agências, se é que preservam ainda esta nomenclatura, nada mais são que novas formas de responder à novas demandas. O negócio do cliente mudou. A revolução digital virou o mundo de ponta cabeça, desconstruiu o antigo norte, as bússolas de outrora desmagnetizaram. Mutatos mutantis. Amir Kassaei (Global Chief Creative Officer da DDB) falou que nós, agências, estamos todos perdidos. E pior, confundindo os clientes, bullshitando coisas a torto e a direito. A verdade é que o inexorável se instalou sem pedir licença e sem oferecer perdão. E além de tudo, soma-se um oceano de pilantras, ilusionistas, bullshitellers de plantão, dublês, profetas digitais, gurus da New Golden Age, decifradores iluminados das criptoestratégias algorítmicas, dos enigmas mágicos das gerações X/Y/Z/um sorvete colorê. Clientes pressionados e desacautelados embarcando como cobaias suicidas no conto de certas power-houses-digitais. Washington Olivetto escreveu um excelente artigo sobre as consultorias, as agências e afins: no fim, a esperança por uma grande ideia, uma ideia, a famigerada big idea, por favor. É pedir muito?

 

Quem são seus ídolos – dentro e fora da profissão?

Forte a palavra “ídolo”. Ídolo mesmo, neste sentido de deificação, tenho um. Não consigo não pensar nele. Aquele que gosto de definir como o maior diretor de criação de todos os tempos: Steve Jobs. Ídolo, essa quase divindade, tem de ser, para mim, alguém que produz, que é, de verdade, autor de algo. Pessoas cujo trabalho me deixem desconcertado, embasbacado. Alguns destes talentosos inspiradores preferidos são: Lucien Freud, Chuck Close, Francis Bacon, David Hockney, Milton Glaser, Yo Yo Ma, Simon Rattle, Roger Federer, Annie Leibovitz, Irving Penn, Jonathan Ive, Jackie Stewart, Norman Foster, Terence Malick, Lee Clow, Saul Bass, Paul Rand, Lou Dorfsman, Dan Wieden, John Hegarty, Stephen Fry, Jeff Bridges, Anish Kapoor, Egberto Gismonti, John Tavener, Arvo Pärt, Gustav Mahler, Brahms, Elgar, Sting, Tom Jobim. Bom, nem preciso mencionar o Petit, certo?

 

Se não fosse publicitário, o que seria, o que acredita que teria se tornado?

Artista ou artista-professor ou professor-artista. Acho.

 

O que esperar do futuro? Como você enxerga o seu trabalho, a sua empresa, no caminho futuro do negócio da comunicação das marcas?

O futuro, por definição deveria ser uma evolução do presente. E idealmente esperar que seja, claro, melhor. Está muito na moda bancar o visionário, falar de tendências, mostrar-se hiperconectado com as novas plataformas, arrumar um jeito, qualquer que seja, de encaixar no seu discurso expressões como Internet das Coisas, Big Data, AI, AR, VR, MR, XR… Fato é que nada disso é mais tendência. Os desafios do futuro presente impõem disciplinas novas, habilidades, estudos, especialidades, transformações velocíssimas. Só sabemos que quase nada será como antes. E essa sua pergunta é a que toda a indústria da comunicação das marcas, do marketing, está fazendo a si mesma. E se o “o que” talvez seja mais universal e menos mutável, o “como” exigirá de todos atualização constante. A sabedoria e a genialidade será emergir, como sempre, desta crescente complexidade com respostas simples, relevantes, memoráveis. Tá fácil!

 

Como encara hoje as discussões em torno da remuneração, do BV, e outros “choques culturais” que vêm ocorrendo?

Como criativo nunca fui muito íntimo dessas discussões sobre remuneração. Sempre mantive uma distância salutar desta questão. Sei que é uma equação de números que insistem em não fechar. Do pouco que posso e me atrevo a dizer, acho que há uma questão anterior e muitíssimo mais fundamental e da qual o tal BV é apenas uma pequena parte: a tradicional forma como as agências de publicidade sempre se remuneraram, o clássico modelo de remuneração por mídia. Não consigo não pensar, hoje, que isso foi uma deformação histórica, um equívoco cujas consequências batem agora nas nossas portas. Esse modelo talvez tenha deseducado gerações de profissionais acerca de quanto vale nosso verdadeiro trabalho, aquele feito dentro da agência, pelos seus profissionais. As agências se especializaram em ganhar sobre aquilo que nunca fizeram: a veiculação. Em troca, optou-se por dar de graça todo o trabalho, o talento, a expertise de centenas de profissionais de criação, planejamento, atendimento e mídia; tudo que fazíamos em casa. De graça, o nosso ouro. Nunca se apresentou este custo aos clientes. E o que não se vê quanto custa, não tem custo, é de graça. Se o mercado, os anunciantes, hoje, têm dificuldade em nos valorizar, e em nos valorar, em entender um custo de projeto, em aceitar o orçamento de uma marca, o preço da criação de uma campanha, não precisamos perguntar de quem é a culpa. Suicídio lento.

O que faz quando não está trabalhando?

Fico pensando no trabalho. E, muito recentemente, para não pensar no trabalho, resgatei meu passado: a pintura. Meu lado obsessivo achou uma nova válvula de escape. Ou de aprisionamento.

 

Que livros tem lido, que filmes ou séries tem assistido?

Confesso que ando longe do cinema, a grande arte. Na linha fast-cinema-by-Netflix vi recentemente “Private Life”, da Tamara Jenkins, com aquele adorável ator Paul Giamatti. As tais séries, porém, são o novo ópio televisivo. Vi e ri muito em “The Kominsky Method”. Adorei compulsivamente “Peak Blinders” e agora não desgrudo, viciado, de “Comedians in Cars Getting Coffee”, com Jerry Seinfeld. Falando em livros, a pilha deles em lista de espera está grande e só cresce. Agora estou lendo “A Bigger Message”, do crítico e historiador de arte David Gayford. Produto de centenas de horas de entrevista com o pintor, amigo do autor, outro também David, o Hockney. Na sequência, “Leonardo da Vinci” nas palavras do brilhante Walter Isaacson, livro que ganhei do Breno Strassacapa, meu filho.

 

Que perfil atrai você para contratar na sua equipe? Quem são as pessoas que você quer ter por perto, trabalhando com você? O que você busca num jovem profissional?

Sou chato. Gosto de gente talentosa. Mas com um detalhe fundamental: que se dedique ao trabalho como se não tivesse talento algum. Essa é a fórmula. Assim, pura e simples. Essa é minha conclusão definitiva depois de já quase 34 anos dentro desta panela de pressão. Tudo, tudo, resumo nisso. Portfólio? Ah, ok. Mas o segredo não está aí. Não para mim. Meu jeito, minhas escolhas. Amo ainda mais os que chegam cedo e não amam sair tarde. Amo os que querem; os que, além disso, precisam, então nem se fala. Sem fome, não vive. Jovem que fica na reunião mexendo no celular não tem futuro comigo, dura pouco. Adoro identificar talentos, mas preciso sentir empatia, desejo e reciprocidade, empenho, comprometimento, dedicação, entrega. Sou operário e gosto de hard workers. Coisa de capricorniano.

 

Como você se vê, velhinho? Fazendo o quê?

Antes de mais nada preciso ficar velhinho, assim mesmo, velhinho, bem pequeno, magro e ágil. Porque, como um dia ouvi de um professor de tênis muito sábio, repare, quase não existe “velhão”; os muito grandes não duram, vão embora mais cedo. Quero morrer jovem o mais tarde possível. Para isso preciso diminuir muito ainda. Velhinho é bom, é melhor. Tintas, telas, pincéis, um cavalete e uma boa motivação temática na cabeça podem ajudar. Adoraria viajar muito ainda. Palestras, cursos, aulas, concertos, livros. Ah e vinho, sem dúvida, ajuda muito.

 

Qual a sua ideia de felicidade?

A pergunta mais difícil no fim, óbvio. Acho que felicidade mais que um estado permanente, são momentos. É preciso saber buscá-los, achá-los onde eles realmente possam estar, não onde aparentam estar. Para isso, fique longe do Facebook. Aquilo é teatro, dos ruins. Felicidade, acho, passa por limpar, simplificar, ir no menos, no pouco que vira muito, que vira tudo. Felicidade é a sua, não a do outro. É aquilo que só o seu pode te dar. Nada que esteja fora de você, do que você é ou crê. Felicidade talvez exija abdicação, abdicar de expectativas, esta eterna fonte de frustração, a mãe da não-felicidade. Felicidade não é universal. É pessoal e intransferível, ainda que você possa e querendo deva compartilhá-la.