Desde meados de junho segue a todo vapor um movimento para forçar o Facebook e outras plataformas a combaterem energicamente o discurso de ódio nas redes. Liderado especialmente pelo #StopHateforProfit (Chega de ódio pelo lucro, em tradução livre), o movimento pede às empresas que parem temporariamente a publicidade em plataformas como Facebook e Instagram.
A iniciativa nasceu na esteira das manifestações por justiça racial nos Estados Unidos, após o assassinato de George Floyd por um policial branco. Os próximos passos incluem expandir o pedido globalmente, a começar com anunciantes europeus.
Enquanto isso, a lista não para de crescer. Correm no mercado números que chegam a 400 empresas. Até o fechamento desta edição, o site do movimento lista 312 participantes, entre elas gigantes como Adidas, Ben & Jerry’s, Coca-Cola, Diageo, Ford, Honda, Pfizer, Puma, Unilever e Volkswagen, por exemplo.
A Starbucks também se manifestou publicamente e defendeu que é preciso fazer mais para criar comunidades online acolhedoras e inclusivas. “Líderes empresariais e os formuladores de políticas precisam se unir para afetar mudanças reais. Pausaremos a publicidade nas plataformas de mídia social enquanto continuarmos as discussões com nossos parceiros de mídia e organizações de direitos civis”, anunciou no site.
A Coca-Cola Brasil, como em todos os países em que a empresa atua, está seguindo a decisão global anunciada pelo CEO James Quincey. Ele afirmou não haver lugar para o racismo no mundo e não há lugar para o racismo nas mídias sociais. “A Coca-Cola Company vai pausar sua publicidade paga em todas as mídias sociais globalmente por pelo menos 30 dias. Vamos usar esse tempo para reavaliar nossa política de marketing e determinar se revisões serão necessárias. Também esperamos mais responsabilidade e transparência de nossos parceiros em mídias sociais”, disse em comunicado.
Outro gigante que reforça a ação é o Grupo Heineken. “Devido à preocupação com conteúdo prejudicial nas mídias sociais, estamos analisando nossa estratégia e investimentos, incluindo a decisão de pausar a compra de mídia no Facebook e Instagram globalmente em julho. Continuaremos a dialogar em colaboração com nossos parceiros de mídias sociais, com o objetivo de endereçar de maneira significativa a questão sobre discursos de ódio e informações erradas em suas plataformas”, informa em nota.
Procurada, a P&G, que ficou um ano sem anunciar no YouTube, não confirmou se aderiu a esse boicote. No entanto, a empresa reforçou que iniciou uma revisão abrangente de todos os canais, redes, plataformas e programas de mídia. “A liberdade de expressão é um direito, mas a civilidade é uma responsabilidade e estamos trabalhando com fornecedores e plataformas de mídia para tomar as ações sistêmicas apropriadas. Quando determinarmos que nossos padrões não são cumpridos, tomaremos medidas, incluindo a interrupção dos gastos, como fizemos anteriormente. Isso não é novidade para a P&G. De fato, hoje existem centenas de programas e milhares de canais e sites digitais em que não anunciamos porque eles não atendem aos nossos padrões”, disse em nota.
Queda de braço
Além da perda de receitas para as plataformas e seus executivos, outro ponto em debate é a dependência das mesmas empresas e qual a maior fonte da perda neste momento, se as grandes corporações ou as pequenas e médias companhias.
Enquanto isso não fica claro, um terceiro efeito negativo escorre em praça pública: a desvalorização da marca. O Facebook teve queda de 8,3%, uma perda de US$ 56 bilhões. Segundo especialistas, isso é resultado da mensagem passada pela empresa: ser conivente com os discursos de ódio nas timelines. No mesmo dia da queda, Mark Zuckerberg havia dito que se o conteúdo fosse de um político e de interesse público, seria permitido, porém em breve passaria a ser rotulado. “Permitiremos que as pessoas compartilhem esse conteúdo para condená-lo, assim como fazemos com outros conteúdos problemáticos, porque essa é uma parte importante de como discutimos o que é aceitável em nossa sociedade”, escreveu.
Marcelo Santos, professor do mestrado da Faculdade Cásper Líbero e especialista em consumer insights, explica que o consumo contemporâneo não ocorre por necessidade, mas por desejo e compromisso, e o boicote deve durar se as plataformas seguirem omissas. “Enquanto valores como verdade, diversidade, inclusão, responsabilidade social e ambiental forem importantes para os consumidores, funcionando como guias de afeto e consciência para as suas compras, tais valores também serão importantes para as marcas”, analisa ele.
Ao avaliar o futuro dos investimentos em plataformas digitais a partir de ações como essa, Santos lembra que isso sempre foi problemático, por exemplo, em função de métricas pouco confiáveis. “Por muito tempo esta caixa-preta privilegiou as plataformas. Elas davam as cartas amparadas pelo discurso de que seriam imprescindíveis no contato com as audiências. Mas a crescente rejeição do público ao modo de funcionamento das plataformas virou o jogo”, cita.
O professor explica ainda que o ecossistema das plataformas digitais parece igualitário, mas é “profundamente hierarquizado” e os anunciantes não vão mais aceitar uma “posição subalterna”, especialmente se esta prejudicar o trabalho de construção de marca. “É espantoso observar que as empresas de mídia digital mais importantes não tenham acordado para isto. Ou elas entendem que os usuários, a sociedade civil organizada, as marcas e o poder público devem ser ouvidos para problematizar o funcionamento das regras, ou vão fechar as portas”, indica.
Na visão de Cris Camargo, CEO do IAB Brasil, é difícil prever se o boicote vai durar, pois existem marcas com campanhas contínuas, outras com planejamentos específicos, e muitas já estavam com previsões de reduções drásticas por conta da pandemia.
Para a executiva, um mercado que envolve muita tecnologia vive da dinâmica de atualizações, versões novas, ajustes constantes, e o que está acontecendo são “ajustes evolutivos para o bem da publicidade digital”. “O recado passado é a necessidade de um novo ajuste que consiga acomodar questões sociais, liberdade de expressão, alcance de mensagens e segurança para o anunciante. Acreditamos na evolução sustentável da publicidade digital. Para que aconteça, precisamos encontrar o meio-termo entre os interesses de todos. Paradas técnicas como esta são extremamente importantes para seguirmos evoluindo o meio”, afirma.
Macir Bernardo, coordenador do curso de marketing da Universidade Anhembi Morumbi, também vê como imprevisível a duração do boicote, pois vai depender das respostas das detentoras destas plataformas. “Imagino que será rápido. O passado recente demonstra que as empresas têm revisto suas posições, pois é melhor perder parte do mercado fazendo uma opção, do que apresentar indefinição e correr o risco de perder o mercado inteiro”, diz. Além disso, ele acredita que a isenção das plataformas em relação aos mais diversos tipos de posicionamento é uma posição incômoda. “O mercado exige cada vez mais que as empresas deixem bem claro quais seus princípios, valores, como pensa e toma suas decisões, sejam elas quais forem”, diz.
Análise semelhante tem Márcio Assis, coordenador do curso de marketing da FMU, que vê o boicote durando pelo menos até o fim de 2020. “Apesar de o Facebook dizer que os investimentos voltarão logo, o boicote está aumentando, e estas empresas terão de rever, provavelmente, sua postura, pois é a reputação da marca que está em jogo. Não há mais espaço para racismo e manifestações de ódio em redes sociais. Precisa haver um filtro”, afirma.
Ao PROPMARK, o Facebook informou que “bilhões” são investidos para manter a comunidade segura. Teriam sido banidas 250 organizações supremacistas brancas do Facebook e Instagram, e o uso de inteligência artificial ajudou a encontrar quase 90% do discurso de ódio proativamente.
Mas parece que não será suficiente para conter o boicote. Segundo a Campaign, o Facebook fez uma reunião de emergência com líderes das agências de mídia, para tentar amenizar suas preocupações. À publicação, uma fonte informou que “eles vendem para agências e clientes que estão cuidando disso e não há com o que se preocupar”. Os executivos teriam reiterado declarações de Zuckerberg e reforçado que a rede está trabalhando com grupos de direitos civis para auditar políticas. Uma nova auditoria será concluída em agosto.
Tais efeitos exemplificam a visão citada por Santos, de que as plataformas e os anunciantes não podem ser avaliados de forma isolada, sem considerar as estruturas sociais e políticas nas quais estão inseridos. “Recentemente a legislação tem sido empregada pelo Estado para controlar socialmente o que acontece nos ambientes digitais. Usuários e empresas, por outros instrumentos, também participam desta regulação. O tempo das plataformas autoritárias, que impunham suas políticas ao modo do ‘adapte-se ou fique de fora’ acabou.”
Para Diego Oliveira, CEO da Youpper Insights e professor de mídia da ESPM, independentemente do tempo que vai durar, o boicote deve ser visto mais como um alerta das empresas para a plataforma. “Um meio de dizer: ‘não somos coniventes com nenhum tipo de opressão ou conduta que gere ódio’. O que pode acontecer, na minha opinião, é que esses boicotes se tornem mais frequentes. Se essas plataformas não se posicionarem e, efetivamente, fizerem algo a respeito do discurso de ódio que se propaga, cada vez mais as marcas – e acredito que os usuários também – vão seguir por um caminho que force essa atitude. Que as marcas que aderiram ao boicote vão retomar seus anúncios, acredito que sim. Mas a questão neste momento é a comoção que isso está causando – não apenas em termos de mídia, mas também no que se refere ao lucro”, analisa.
Apesar deste boicote e de outros que possam acontecer, ele acredita que o aumento de investimentos no ambiente digital é uma realidade sem volta. “A questão é: com quais plataformas devo e quero me conectar. As marcas têm se posicionado cada vez mais sobre causas e temas que são cobrados pelos seus consumidores. Ficar em cima do muro não é mais aceitável. Não estou discutindo aqui se isso é positivo ou negativo, mas que é o cenário que vivemos e se fortalecerá. Devo conectar minha marca a uma rede ou plataforma que não trabalha para a construção de um mundo melhor? Será que pelo lucro vale tudo, até mesmo anunciar em canais que trazem discurso de ódio?”, questiona.