Com o tempo, as sucessivas versões dos acontecimentos vão criando a chamada história oficial, que geralmente é pura ficção, ou pelo menos um arranjo que permite a existência de heróis e pusilânimes, sem nuances, de forma que possa ser estruturada uma dramaturgia mais ou menos lógica. Seria muito difícil aos professores de história discutir os verdadeiros papéis dos protagonistas da História, relativizando a vilania de Calabar ou tentando ponderar a respeito da verdadeira importância de Luiz Carlos Prestes na vida nacional. Aos poucos, os personagens se cristalizam e perdem a dimensão humana, atendendo às necessidades das narrativas, criando vilões e heróis que se ajustam aos personagens que representam.
Deodoro, por exemplo, o Generalíssimo, que nós conhecemos de estátuas equestres, eternizado em bronze no momento da Proclamação da República, foi um indisciplinado durante o medíocre início de sua carreira militar, detido cinco vezes por má conduta. Por sorte, era capitão quando eclodiu a Guerra do Paraguai e, ajudando a matar paraguaios, foi promovido a major, tenente-coronel e coronel por atos de bravura. Ele mesmo dizia que “Solano Lopes foi meu protetor”, sugerindo que o ditador paraguaio foi o responsável pela guerra e pelo seu sucesso na carreira. Uma de suas frases esquecidas pela história foi o recado que mandou para o general Almeida Barreto, que estava demorando para cumprir a ordem de se posicionar no Campo de Santana, palco da Proclamação da República: “Ordenança, vá dizer ao Barreto que faça o que lhe ordenei ou enfie a espada no cu”.
Claro que não é necessariamente um dístico para ser gravado em mármore num monumento. Alquebrado, tiveram de lhe arrumar um cavalo manso para que não caísse antes de derrubar a monarquia, que até pouco antes defendia como o “único regime para um país ainda não maduro”. Outro presidente, Hermes da Fonseca, foi considerado pelos seus contemporâneos um dos políticos mais tapados de toda história até então.
Segundo Medeiros e Albuquerque, depois de cada manifestação de Dudu (apelido de Hermes), os donos de bancas de jogo do bicho cotavam os palpites no burro. Por falar em jogo, diziam também que era pé- -frio. Para se ter uma ideia, depois de conseguir um empréstimo para o Brasil de 2,4 milhões de liras, depositou metade num banco russo e essa quantia foi mais tarde encampada pela revolução soviética. Ou seja, em algum momento o ouro de Moscou foi brasileiro. Uma das mais sofisticadas avenidas do Rio de Janeiro tem o nome de um ex-presidente, Delfim Moreira, que foi enlouquecendo durante o governo a ponto de chegar a não falar coisa com coisa. Ficou tão lelé que uma vez se escondeu de Rui Barbosa por trás da porta de seu gabinete, o que levou o Águia de Haia a dizer que achava muito estranho um louco poder ser presidente da República e ele não. Hoje nós criticamos Fernando Henrique Cardoso por ter duas aposentadorias, mas outro nome de avenida, Epitácio Pessoa, conseguiu uma aposentadoria com vencimentos integrais aos 47 anos por causa de um cálculo na vesícula. Depois de aposentado passou a receber também salários como professor da Faculdade do Recife, ministro do Supremo, senador e juiz da Corte Internacional de Haia. E ainda advogava a favor de empresas estrangeiras, contra o Brasil. Um exemplo a ser seguido.
Boa parte do que eu contei aqui está no livro Guia Politicamente Incorreto dos Presidentes da República, de Paulo Schmitd, o qual, como eu já escrevi na semana passada, se baseou em inúmeros documentos irrefutáveis. Agora você me pergunta o que eu pretendo com isso? Simplesmente não falar das loucuras desses dias, que daqui a algumas décadas deverão já estar em estado de livros de história. Não posso imaginar como ficarão para a posteridade estes acontecimentos que estamos vivendo. Será que alguém vai acreditar no circo de horrores que foram os votos no Congresso? Ficarão para sempre registrados os destemperos de todos os tipos perpetrados pelos nossos representantes, aliás, legitimamente eleitos? O que significará, passados os anos, o inacreditável voto de Bolsonaro e sua homenagem a um dos personagens mais tristemente célebres da vida nacional? Só de uma coisa eu tenho certeza. Quando tudo isso passar, quando nós todos passarmos, quando esses dias já tiverem virado livro, nós estaremos mortos. E riremos de tudo isso, pois, como dizia Drummond, “os mortos não choram”.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor