“Assistir a propaganda e ver: não dá pra ter aquilo pra você”. A frase é de um clássico de 1997 do grupo de rap Racionais Mc’s e narra a relação dos negros com o universo da publicidade. Ao contrário da citação da canção Capítulo 4, Versículo 3, a comunicação contemporânea vem se beneficiando de trabalhos feitos por e para a população negra. Exemplo disso foram os cases nacionais que abordavam a temática racial premiados no Cannes Lions 2019.
“É muito doido ver onde o rap nacional está chegando e fazer parte disso”, celebrou o rapper Baco Exu do Blues em seu perfil no Instagram. O trabalho da agência AKQA para lançar o seu segundo disco faturou o Grand Prix em Entertainment Lions for Music. “Na prática, a premiação não vai mudar nada na vida e no dia a dia de uma comunidade mais carente. Mas eu acho que quando a gente fala do exemplo do Baco, que era sobre colocar uma mensagem de preconceito e opressão nos holofotes, quanto mais pessoas ouvirem essa mensagem, melhor”, afirma Diego Machado, sócio e diretor de criação da AKQA. Outro diretor de criação da agência, Renato Zandoná, afirma que o case ainda poderá render bons frutos em outros festivais. “É algo que vamos ver mais para frente”, diz.
Outro trabalho nacional que abordou a questão racial e levou Leão em Cannes foi o case Machado de Assis Real, que foi feito pela Grey para a Faculdade Zumbi dos Palmares. Segundo historiadores, o maior escritor da história do Brasil foi um homem negro. Uma foto descoberta em 2018 corrobora essa tese. Faculdade e agência apresentaram, então, uma imagem de Assis mais fiel à realidade, recriada com base em dados históricos e fotografias antigas.
“Desde o começo do projeto, até o final, entendi que a finalidade dele sempre foi maior que o prêmio. Fiquei feliz em ter ganhado Cannes. O projeto competiu com o mundo todo. Mas não foi o mais importante para mim. O impacto que ele teve abrange muito mais que isso, o prêmio para mim ficou sendo uma gota no meio do oceano perto do impacto que trouxe e vai trazer para as próximas gerações”, analisa Alex André, da área de planejamento da Grey e ex-aluno da Zumbi dos Palmares, que participou do projeto Machado de Assis Real.
Black Box foi outro trabalho brasileiro que tratou da questão racial e acabou premiado. Criada pela J. Walter Thompson, também para a Zumbi dos Palmares, a ação criou um livro que resgatou o legado histórico dos negros. “A gente já estava sentindo que Cannes iria levantar estes assuntos meio urgentes, como a questão racial. Ficamos chocados por um lado e felizes do outro. Esse livro é o começo de um trabalho que estamos fazendo com a Zumbi. Este ano temos uma projeção de fazer várias coisas com eles”, explicou Danilo Janjacomo, diretor de criação da agência.
“Mais do que a surpresa, foi uma constatação de uma dimensão que a gente tinha muito fragmentada no Brasil – entre nós negros ou de quem está dentro desse tema – de que tinha uma força motriz, uma força mundial que estava se constituindo e se consolidando e que, em algum momento, ela teria condições de se manifestar nos mais diferentes segmentos. Vimos algumas movimentações de temas negros nos Estados Unidos, #VidasNegrasImportam, os segmentos da área coorporativa também se posicionando, o cinema, Hollywood, tinha uma força que estava se constituindo e, em algum momento, poderia se manifestar também nesse ambiente delicado que é a comunicação social brasileira, a publicidade nacional”, explica José Vicente, reitor da Zumbi dos Palmares.
Para ele, Cannes, de fato, joga luz para essa perspectiva. “Mas, tanto quanto jogar essa luz e trazer essa afirmatividade, eu acredito que, do ponto de vista do símbolo, ele muda a história. Como paradigma, ele muda a história porque não somos só nós brasileiros que estamos dizendo que tem um equívoco e ele precisa ser corrigido. É o mundo que está dizendo isso. Agora, abre uma janela de possibilidades para você fazer a recuperação de tantas outras injustiças como essa. Criou um paradigma”, analisa em referência ao case Machado de Assis Real.
Tanto Black Box como Machado de Assis Real terão continuidade. A criação da Thompson será retomada em sala de aula na Zumbi dos Palmares e o case da Grey alterou o padrão de como Machado de Assis é retratado pelo mundo. “Mudaram até a imagem da Wikipedia internacional”, comenta Alex André. Além disso, segundo o reitor da instituição, em novembro o escritor será homenageado na Virada da Consciência Negra, um evento que aproveita o feriado de 20 de novembro para promover a cultura negra. Como ele é idealizado pela Zumbi dos Palmares, todas as imagens do escritor utilizadas serão a do “novo” Machado de Assis.
“O prêmio não é o mais importante, mas acho que tem uma coisa legal porque ele cria uma dimensão global para o projeto. O mundo passa a ver. […] O ponto é a gente poder contar essa história dessa injustiça e desse absurdo para o mundo inteiro, fazendo com que outras histórias tão absurdas possam eclodir”, explica Adriano Matos, CCO da Grey Brasil.
De dentro pra fora
Se os cases jogaram luz sobre problemas graves do Brasil, isso só foi possível porque AKQA, Thompson e Grey possuem uma filosofia que justifica a criação de trabalhos assim. “A diversidade de olhares é uma condição necessária à criatividade. Se você botar homens brancos, loiros, de olhos azuis trancados numa sala, vai ser menos criativo do que brancos, negros, índios, mulheres e idosos, juntos, compartilhando as suas visões de mundo”, explica Matos. “Se você não se ligar nisso, vai perder dinheiro. O Black Box só foi possível porque temos profissionais de todas as áreas envolvidas […] Pessoas que sabem falar sobre esse tema. Não tem como fazer LGBT sem ter LGBT no trabalho ou case racial, sem ter diversidade racial dentro da agência. Agora, finalmente, o mercado entendeu. O júri de Cannes também olhou para isso. Quando mexeram no júri, mexeram na pauta”, comentou Janjacomo.
“Não tem possibilidade de perder, todos ganham quando a gente faz uma convergência nessa natureza. Um olhar diverso produz mais valor, diferencial competitivo, produto melhorado, mais crescimento, mais desenvolvimento, mais lucro, mais dinheiro no bolso. Para todos. Para o psique da sociedade, para a moral da tropa… A gente levanta um país se a gente conseguir fazer todos se verem e se sentirem pertencidos”, explicou o reitor da Zumbi.
“Uma vez eu li que uma sociedade atinge todo o seu potencial quando cada indivíduo é capaz de atingir o seu potencial. Numa sociedade em que a gente está impedindo que as pessoas, por qualquer questão de gênero ou cor, atinjam todo o seu potencial, a gente está se diminuindo. Quando a Grey coloca os estudantes da Zumbi dos Palmares aqui dentro, cara, não é caridade não, a gente está ganhando perspectiva, ponto de vista, olhar sobre o mundo. Tem de parar com essa perspectiva que estamos dando, a gente está trocando de forma justa onde todos saem ganhando com essa troca, numa comunicação que é cada vez mais colaborativa […] Eu quero envergonhar os líderes da indústria de maneira que todo mundo possa repensar as suas posições. As pessoas têm de ficar constrangidas de olhar para o seu entorno e falar: eu não tenho o meu país, eu não tenho a minha nação representada aqui dentro. Esse cara aqui [apontando para Alex André] é um pedaço do Brasil aqui dentro. Essa pluralidade é fundamental”, finaliza Matos.