A conexão entre o morro e o asfalto, verso cada vez mais popular em músicas e campanhas, é uma evidência de que o público nas comunidades e periferias das grandes cidades está crescendo a cada ano. Dados apurados pelo Instituto Data Favela, criado para mapear a realidade das favelas brasileiras, rastreando oportunidades de negócios para aqueles que desejam investir dentro das comunidades, confirmam essa evidência. A renda dos favelados brasileiros é o equivalente ao consumo de países como Paraguai e Bolívia. Em 2013, o salário médio dos moradores era de R$ 1.068 contra R$ 603, em 2003. Se as favelas fossem um estado, seriam o quinto mais populoso da federação brasileira, capazes de movimentar R$ 63 bilhões a cada ano.
Diante disso e de que, no Brasil, 6% da população brasileira mora em favelas, correspondendo a 12 milhões de habitantes, os olhos das marcas estão voltados para esse público, ou deveriam estar. Fabio Mariano Borges, professor do mestrado em Comportamento do Consumidor da ESPM, expõe que as marcas ainda estão tímidas e infelizmente parte dos líderes de marketing tem muito preconceito. “Eles acreditam que se direcionarem as marcas para as classes populares, isso pode ‘arranhar’ o público das classes mais altas. No entanto, esse preconceito é infundado, porque não há nenhum caso de uma empresa que tenha se dirigido a esse público e tenha desqualificado seu negócio”, destaca Borges.
De acordo com o professor, ainda não há histórico de marcas que nasceram pensando nessa base da pirâmide, a não ser as marcas que já são das comunidades. Este é o caso de Denis Torres, idealizador da marca de roupas Complexidade Urbana, criada no Complexo do Alemão, comunidade do Rio de Janeiro.
Pensando não apenas na venda do produto, Torres buscou algo no qual toda a comunidade se identificasse e que fosse uma manifestação dos conflitos e discussões urbanas. As estampas das camisetas são desenhadas por ele, a partir daquilo que pensa e que observa no seu dia a dia. Com a instalação das Unidades de Polícia Pacificadoras (UPPs) dentro do complexo, realizada pela polícia em 2010, Torres afirma que foi possível que várias pessoas abrissem seus próprios negócios. Com a queda do controle do tráfico, o comércio conseguiu se expandir para um público consumidor fora das favelas.
“Quando fiquei sabendo que Glória Peres escreveria a novela Salve Jorge, que se passaria no Complexo do Alemão, percebi a oportunidade de começar a fabricar camisetas que identificassem a nossa comunidade. Com a circulação de mais pessoas, meus produtos ficaram conhecidos. Nós fomos os pioneiros em utilizar a palavra favela em camisetas. Começamos a afirmar o orgulho de onde vivemos e de manifestar nossas opiniões”, explica Torres.
De acordo com o Data Favela, 81% das pessoas gostam de viver nas comunidades, 66% não têm vontade de sair de lá e 95% se consideram felizes. O estudo também revela que a parcela de famílias faveladas na classe C é maior do que a do Brasil como um todo. Estima-se que 65% dos favelados são da classe média, enquanto que 54% correspondem ao geral.
Sobre quem é esse público e como se comporta enquanto consumidor, Borges destaca algumas características. O atendimento, por exemplo, deve ser pessoal, amistoso, reproduzindo um tratamento familiar. “É importante para o consumidor ser reconhecido quando entra na loja, indicando pessoalidade. Os preços mais baixos também são um atrativo de compra, pois eles gostam de alternativas e valores competitivos. Esse público está cada vez mais exigente por benefícios e gosta de variedade de produtos”, explica.
O consumo de mídia concentra-se, segundo o professor, no tádio e na TV. Entretanto, Borges ressalta que a TV por assinatura e as redes sociais têm ganhado força entra as classes populares. “A mídia local também tem um papel importante, pois os anúncios deixados nos locais de acesso das comunidades e periferias, como padarias, supermercados, bares, entre outros, impulsionam a propaganda”.
As camisetas da Complexidade Urbana ficaram populares entre os moradores do Complexo do Alemão, entre outros motivos, pela divulgação realizada por celebridades, como Mc Catra, Marquinhos Sensação, Mc Copinho e outras figuras populares do funk e do pagode. “Alguns artistas vestiram nossas camisetas em filmes, novelas ou videoclipes. Por vendermos pela internet, alcançamos mercados de todo o Brasil. Há algum tempo, professores da rede estadual compraram nossas camisetas para a reunião que teriam com o governador. Também estamos presentes nas festas da comunidade, como bailes funks”, comenta Torres.
As classes populares estão aprendendo a comprar em várias categorias, analisa Borges. Ainda é recente a sua imersão em bancos, seguros, planos de saúde e guloseimas. “Não é ostentação, muitas vezes o descontrole nas compras com cartões de crédito são por dificuldade e falta de conhecimento a respeito das regras. Porém, já estão aprendendo como tudo funciona”. Os programas sociais, segundo o professor, são medidas que aquecem a economia e não são bolsas com destino exclusivo. “Todos têm direito de fazer o que quiserem com o dinheiro, pois o objetivo é gerar uma renda extra para que as famílias comprem o que precisam e desejam”, considera Borges.
O Rio de Janeiro é o único estado do Sudeste com mais de 10% da população vivendo nas favelas. Com esse volume populacional, Borges aponta que a cidade possui um mercado consumidor potente e com a realização dos Jogos Olímpicos, o turismo irá movimentar a economia. “Os morros não estão mais se marginalizando, mas sim se integrando. A realização de eventos fomenta os serviços locais e é esperado um grande crescimento para os próximos cinco anos”, finaliza.
Agência sobe o morro
A agência NBS desenvolve um “negócio social” chamado Rio + Rio para empresas que querem investir na comunidade, beneficiando aquela região de alguma forma. Lançada há dois anos, a agência está localizada no Morro Santa Marta, no Rio de Janeiro, e os trabalhos envolvem os moradores da própria comunidade.
Aline Pimenta, diretora de negócios do Rio+Rio, explica que subir o morro e ter a agência localizada na comunidade foi importante para conhecer as rotinas das favelas. Além disso, identificar os vários públicos ali existentes também se fez necessário para que os projetos fossem efetivos. “Temos nos próximos dois anos os olhos voltados para os Jogos Rio 2016 e um mundo de oportunidades a serem exploradas pelas marcas. Estamos pensando em vários projetos para capturar esses possíveis clientes”, revela.
Algumas ações são organizadas no escritório Rio+Rio para favorecer a comunidade e informá-la sobre o universo de marketing. Aline relembra que durante 2014, todos os meses receberam convidados de diversas áreas, que motivavam os moradores a abrirem seus negócios, divulgares seus produtos, entre outras ações. Uma biblioteca, com mais de 1.000 títulos, está disponível para quem se interessa pela leitura.
“É importante lembrar que não fazemos propaganda nas favelas. Fazemos projetos e desenvolvemos mecanismos para as marcas se comunicarem. O Sebrae, por exemplo, é um grande parceiro”, observa Aline.
*A pesquisa “Radiografia das favelas brasileiras”, realizada pelo Instituto Data Favela, entrevistou duas mil pessoas em 63 favelas de dez regiões metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Pará, Ceará, Pernambuco, Bahia, Paraná, Rio Grande do Sul e Distrito Federal). Os resultados deram origem ao livro “Um país chamado favela” escrito por Renato Meirelles, presidente do instituto de pesquisa Data Popular, e Celso Athayde, presidente da Favela Holding e criador da Central Única das Favelas (CUFA).