Julia Flamingo é especialista em arte contemporânea e fundadora da plataforma cultural Bigorna

O que um país do outro lado do planeta do tamanho de Pernambuco pode ensinar ao mundo sobre arte? Pois foi isso que a jornalista, historiadora e especialista em arte contemporânea Julia Flamingo foi saber na Coreia do Sul.

Nômade digital, ela é fundadora da Bigorna (@bigorna_art), uma plataforma cultural que fomenta o pensamento crítico por meio de conteúdo e cursos tendo a arte como base. Inspirada na ferramenta que molda metais, ela acredita que a arte tem o poder de uma bigorna para remodelar pensamentos rígidos, muitas vezes enviesados e preconceituosos.

E a partir daí foi ver in loco como e por que a K-Arte está moldando a cultura global.

O que a levou a criar a Bigorna?
Quando saí da Veja São Paulo em 2017, onde trabalhava como jornalista, queria criar uma plataforma jornalística de arte contemporânea que tivesse entrevistas, checagem de fatos, respeito pela informação, respeito pelo leitor, tudo isso, acrescentando o uso de uma linguagem fácil, sem jargões, para falar com o grande público. Até porque ainda há quem ache que arte contemporânea é uma coisa muito complicada de entender.

O que a arte contemporânea pode fazer com o ser humano?
Acima de tudo, ela tem um poder muito grande de criar empatia. Ela fala a partir do olhar do artista, uma pessoa no século 21 que vive no mesmo mundo que todos nós compartilhamos. É construída a partir desse olhar muito real do mundo, mas com a subjetividade humana. E o que é muito legal é que ela possibilita conhecer um pouco a realidade daquela pessoa, porque não fala do mundo a partir de números, de fatos, notícia. É emoção, é sensação.

Pode dar um exemplo?
Durante o festival Loop Lab Busan, eu assisti dentro de um quarto de hotel uma videoarte de uma artista coreana, a Seo Young Chang, que até então nunca tinha ouvido falar. Uma pessoa que estava de alguma maneira falando sobre o envelhecimento do corpo e como ela se sentia presa dentro dele. Comecei a me sentir sufocada. Não foi uma coisa racional. Ela não estava diretamente falando sobre envelhecimento. E eu não sou velha, eu sou jovem! Eu não tenho a existência que essa coreana tem, nem sei por que ela estava falando sobre aquilo, mas me pegou de um jeito que eu pude me sentir um pouco no corpo de uma pessoa idosa, ou de alguém com mobilidade restrita, o que me deu uma sensação de incômodo. Fui perguntar para o galerista sobre a artista e ele me disse que ela era muito jovem, mas estava doente e vivia em hospitais, o que a fazia se sentir presa a cama. Eu senti tudo isso, antes mesmo de ele me dizer.  Então, é um exemplo muito próximo, real e recente para entendermos como a arte constrói esse tipo de empatia. E no mundo em que vivemos hoje, em que as pessoas não se conversam, não tem diálogo, tem muito preconceito, em que as redes sociais alimentam antagonismos, qual ferramenta pode trazer esse olhar para o lado, para uma realidade que não é a minha, para a empatia? Para mim é a arte!

Qual a importância de fazer esse tipo de jornalismo nas redes sociais?
Eu sempre entendi o papel do jornalista como um mediador. E fui estudar isso no mestrado. O jornalista de arte é um mediador cultural no momento em que ele está para além das paredes do espaço de arte, porque o mediador, o educador está dentro dele. A pessoa chega em um museu e pode acessar o mediador que está lá. O jornalista de arte está para além dos muros do museu. Ele funciona como essa pessoa que pode usar a comunicação, a informação e, por conta das redes sociais, o storytelling para atrair pessoas para o espaço de arte. Então o jornalista tem um poder muito legal, mesmo não estando no museu, de ser essa interface entre o público e esse espaço de arte. Para mim, foi muito importante ter passado por uma faculdade de jornalismo, entender o que é uma informação relevante, por que ela é relevante, trazer aquela informação com sustância e checada. Fiz jornalismo no Mackenzie e história na PUC, os dois em São Paulo. Agora, aqui na Coreia do Sul, entrevistei o diretor do Museu de Busan, o responsável pela galeria mais antiga do país, o artista que representou a nação na Bienal de Veneza em 2022, o diretor do projeto da Hyundai que aposta em arte e tecnologia. Todas essas entrevistas eu gravo, apuro e checo as informações de forma jornalística para que tudo que eu falar, seja nas redes sociais, seja nos cursos da Bigorna, eu fale desse lugar.

Você também tem muita atenção com a questão das cópias, não é?
Nas redes sociais, muitas pessoas copiam informações. Elas ouvem e reproduzem. Eu vou ao lugar, eu vou ao país, eu vou à cidade, eu visito a exposição e a partir do que eu vi, das minhas entrevistas e do que eu apurei é que vou levar para as redes sociais. Já cobri arte em mais de 20 países e diretamente desses lugares eu levo para as redes sociais.

Julia Flamingo, fundadora da Bigorna (Divulgação)

Por que ir para a Coreia do Sul?
Sou hoje uma nômade digital. Sou jornalista, contribuo como freelancer para alguns veículos de arte no Brasil (Bravo), em Portugal (Umbigo) e em Londres (The Art Newspaper). Também sou curadora de arte e editora de uma plataforma de arte e tecnologia, só que todos os meus trabalhos, inclusive a Bigorna, são online. A cada dois ou três meses, eu mudo de país e no meio disso estou sempre procurando a cena de arte que me interessa, que está despontando, que tem algo a dizer sobre o mundo hoje. E nada mais diferente do que vir para Ásia, para a Coreia, um país que eu nunca tinha visitado.

O que na arte coreana pode chamar a atenção dos brasileiros?
No Brasil, a gente nasce e cresce com referências muito ocidentais. É uma história escrita pelos Estados Unidos e a Europa Ocidental, que é a história dos ganhadores, a história de quem colonizou. A gente cresce olhando e consumindo tudo que vem de lá. Tudo: cinema, Hollywood, as narrativas todas relacionadas a consumo, cultura, poder... Então eu acho que para nós, brasileiros, olhar um pouco para o outro lado do mundo é muito necessário, porque senão a gente fica vendo metade da realidade. Eu acho que primeiro é olhar para outro lado, entender o que os asiáticos têm para nos ensinar. Até porque parece que não estamos sendo muito bem-sucedidos na nossa relação com a natureza, por exemplo, com o consumo, com a materialidade. Acho que podemos olhar mais para o Oriente para entender um pouco mais a relação deles com a natureza, o espírito, a consciência que vai além da nossa realidade e existência no mundo, olhar para o coletivo, para a tradição e a história, a necessidade deles de olhar para o passado. Olhar para referências que não são referências que a gente cresceu sabendo é muito importante. Dito isso, a Coreia está construindo uma narrativa poderosíssima que está conseguindo atrair a atenção tanto quanto os Estados Unidos. Uma narrativa da cultura pop, que faz pouquíssimo tempo que começou a acontecer com o K-Pop, com os K-Dramas, a K-Culture... E tomou a Netflix, as billboards. Isso não é pouca coisa. Então, olharmos para esse lugar, o que eles estão fazendo, como eles chegaram aí é bem importante.

Estando na Coreia do Sul, de alguma maneira é possível comentar algo sobre a arte na Coreia do Norte?
Não se conhece muito da arte feita na Coreia do Norte. A gente tem acesso a informações de artistas que chegam perto da zona desmilitarizada (uma faixa de 4 quilômetros entre as duas Coreias), como Lee Bae, que é um artista e ativista que liderou um projeto nessa área. A gente sabe mais dessas pessoas que são da Coreia do Sul e têm algum tipo de atuação para falar sobre a divisão entre as Coreias, mas não se sabe exatamente como é lá. O que eu pude acessar de informação até agora fala que a arte da Coreia do Norte é uma arte propagandística, mas não consigo te dizer exatamente como é. Tem uma artista da Coreia do Sul, a Ham Kyung Ah, que imprime fotos em tecido e manda, via China, para a Coreia do Norte, onde serão bordadas pelas mulheres bordadeiras. E essas obras voltam para a Coreia do Sul para serem expostas em museus. Eu vi uma das imagens, que era da bomba de Hiroshima. Tem um outro artista que acho interessantíssimo, Lee Sea Hyun, que pinta as paisagens da zona desmilitarizada inspirado no que ele via com binóculos de visão noturna quando prestava serviço militar. Hoje ele pinta obras em vermelho que são paisagens mistundo o que ele via de Coreia do Norte e Coreia do Sul, ou o que construiu na imaginação. As pinturas têm paisagens dos dois países, tudo em vermelho, porque é a cor da dor, da paixão, da saudade, da violência, da guerra. Aí eu olho para esse artista, será que a gente tem uma realidade próxima? Não, de jeito nenhum! Mas o que será que ele me ensina com suas obras? Quais sãs as fronteiras que a gente enxerga e não enxerga? A gente precisa colocar binóculos de visão noturna para enxergarmos as diferenças, os limites, os preconceitos visíveis e invisíveis? Ou seja, ele me fez pensar. Então esse exemplo, assim como ele imagina o que tem do outro lado, as pessoas aqui imaginam o que tem na cena de arte do lado de lá.

O que não se pode perder para quem estiver visitando a Coreia do Sul?
Em Seul, o Leeum Museum, que fica no bairro bem descolado de Itaewon, é uma atração pela própria arquitetura e tem algumas das exposições mais aclamadas
de artistas contemporâneos. O Arario Art Space é um espaço bem interessante que fica bem no centro turístico, histórico de Seul, perto dos palácios, uma zona que tem muitos museus. O Arario é uma coleção de um dos colecionadores asiáticos mais poderosos. Ele comprou uma casa e a essa casa acoplou uma outra tradicional que já existia ao lado, criou um prédio de cinco andares, foi juntando esses espaços que se tornou superlabiríntico. Outra visita importante é ao Nam June Paik Art Center, que é um centro dedicado ao Nam June Paik, o artista coreano mais importante de todos os tempos. O pensamento da videoarte e da arte e tecnologia está muito baseado no pensamento dele. Também não podemos deixar de falar do MMCA (Museu de Arte Moderna e Contemporânea), que é muito bom, as exposições são muito boas, além de ser uma das instituições mais importantes para pesquisa, para arquivo, premiações para artistas. É uma instituição muito grande e as suas publicações são incríveis.

No curso da Bigorna você também traz essas referências?
São três aulas em que falo sobre arte, história, natureza, falo muito sobre tecnologia, sobre a reconstrução desse país, de onde veio essa cultura, essa narrativa potente que foi construída principalmente a partir dos anos 1980, 1990. Vou falar um pouco sobre o K-Pop, o K-Culture e em todas as aulas vou trazer muitos artistas. É uma viagem pela história da Coreia tendo como base a arte em uma linguagem simples. O que procuramos com a Bigorna é munir as pessoas de informação, referências, atualidades e reflexão para poderem ter consciência crítica do que estão vendo.

Mais especificamente para os profissionais de comunicação e marketing, no que a arte contemporânea coreana pode ser inspiradora?
A Coreia do Sul está ditando um ritmo para o mundo e é necessário que a gente olhe para ela. Na comunicação, no design, na propaganda, eles são maravilhosos. Então a gente precisa ter atenção, e com a arte não é diferente. Eu acho que a arte tem storytelling, tem a estética. Então olhar para a cultura coreana, para a cultura asiática, para o mundo e para ser uma pessoa no século 21 a partir desse lugar é muito inspirador.