Domingo fazia frio. Doutor Roberto Marinho, meu ex-vizinho de Cosme Velho, estaria feliz com a temperatura. Aos domingos frios O Globo vendia mais jornal, com os cariocas presos em casa, cidade inimiga da baixa temperatura. Mas dr. Roberto não é mais vizinho nem a venda em banca de O Globo deve variar com as diferenças do tempo. Surpreendo-me com uma súbita tremedeira. Os dentes batem e me lembro de quando fui filmar na Antártica, 80 graus abaixo de zero. O apocalipse afinal? Sozinho em casa, com a minha mulher viajando, tento me enrolar nos panos que encontro à mão, o quarto longe, a casa girando como no Mágico de Oz. Somewhere Over The Rainbow. Onde andará Dorothy?
Sinto-me morrendo de frio. Pior do que isso, me sinto morrendo. Num último esforço consigo falar com meu filho e minha nora, médica, entra no circuito. Horas depois, estou no Copa D’Or, na emergência, e sou cercado por deputados querendo tirar-me alguma coisa. Sangue, urina, fezes, saliva. Mais sangue. Delação premiada: o que comi, quem comi. O senhor bebe? Aceito um uísque, obrigado. São gentis, mas cada um sai com um pedaço de mim. Ultrassonografia, toque retal, raio-x, nude, selfie, assine aqui. Minha mulher aparece, cara de viúva. No fundo do corredor vislumbro Bolsonaro me aguardando. Junto dele o Coronel Ulstra. A coisa está feia. Piscam luzes. Enfiam-me algo no braço, a enfermeira gentilíssima explica: retofuricina com buscopatina, microcreatina e vacina Sabin. Carrega no molho inglês, digo eu. Ninguém ri. São jovens, sérios, profissionais e não querem perder o ancião já no portão de embarque. Horas depois se descobre: infecção bravíssima. Mais remédio, desta vez contra micro-organismos, antifebre e coisas para tirar a dor no peito, no bilau e no estômago. Volto para casa, vivo. Doutor Roberto me acena do seu terraço.
Como sabem meus parcos, mas carinhosos leitores, moro no Rio de Janeiro, no bairro do Cosme Velho. Um lugar privilegiado, pois foi lá que moraram Machado de Assis, Barbara Heliodora, Eugênio Gudin, Paulo Geyer e Roberto Marinho. São pessoas ilustres do passado e do presente, cuja vizinhança corpórea ou etérea muito me honram. Tem ainda a vista do Cristo. Mas não é isso o que quero contar para vocês. É algo mais trivial.
Sob o viaduto do Túnel Rebouças, numa praça onde fica o terminal das vans que sobem para o morro do Corcovado, estacionam os ônibus de turismo e faz ponto final o tal de metrô de superfície, vivem em perfeita harmonia entre si e com a barafunda ao redor uma família completa de galinhas. Isto mesmo, um galo, numerosas galinhas e uma sempre renovada geração de pintinhos. Vivem soltos, entre as pessoas e os carros, ciscando nas encostas, aproveitando as sobras dos carrinhos de pipoca e dos quiosques de cachorro quente. Desmentindo a lenda de que galinha é burra, nenhuma delas jamais foi atropelada.
Os próprios vira-latas reconhecem o domínio territorial delas. Chefiando a turma toda, um majestoso galo da brasileiríssima raça índio gigante desfila para lá e para cá, peito estufado e olhar desafiador. É um rei em seu reino. A ele fazem reverências não só as galinhas como a frangaiada toda. Os guarda-municipais, os PMs, e até os integrantes da Guarda Nacional ou soldadinhos do Exército, atualmente acampados na cidade, não desfilam sua autoridade com o mesmo garbo e tranquilidade. Uma das minhas dúvidas é o que ele faz com os frangos machos da ninhada, pois há muito tempo ele é único. Não me parece que na calada da noite ele expulse os futuros concorrentes ou mate-os no nascedouro. Pode ser que ele apenas convença o proto galo que a melhor saída é ir montar a própria família em outro lugar. Mas não tenho visto em minhas andanças nenhum outro grupo de galináceos, o que significa que deve haver diferente explicação para esta longevidade. Por favor, não me pergunte por que eu não discorro sobre nosso pavoroso panorama político ou falo de novas perspectivas no mundo do marketing. Não perca tempo imaginando qual é a razão de eu não opinar sobre a revolução digital e a verdadeira possibilidade de as redes sociais influenciarem a decisão de compra. De preocupações profundas já me bastam continuar vivo e descobrir o mistério das galinhas do Cosme Velho.
Lula Vieira é publicitário, diretor da Mesa Consultoria de Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira@grupomesa.com.br)