Há 60 anos o músico baiano João Gilberto nos ensinava que a linguagem se adapta à evolução tecnológica – uma verdade ainda mais poderosa nos dias de hoje. O ano era 1902. Na Casa Edison, no Rio de Janeiro, o cantor Baiano tirava o máximo de sua voz para cantar “Isso é bom, isto é bom, isto é bom que dói”, refrão da canção “Isso é Bom”, do compositor Xisto Bahia. Era a primeira música gravada no Brasil.
Baiano tinha um pulmão poderoso. Não era estilo, era necessidade: o fonógrafo (ou gramofone) funcionava de forma analógica, captando as vibrações da música ao vivo – uma orquestra inteira, os metais e sopros, a percussão, os instrumentos de corda e de teclas ficavam atrás de uma pessoa que sozinha precisava cantar alto o suficiente para ser escutada.
Foi assim até 1927, quando o primeiro amplificador elétrico apareceu no Brasil. O equipamento de gravação contava com um microfone, que aumentava o som da voz sem a necessidade de gritar. Porém, os intérpretes continuaram com a voz empostada como se estivessem em frente a uma grande orquestra. O que era necessidade virou, aí sim, o estilo esperado pelos apreciadores de música.
Em março de 1959, há quase 60 anos (mais de 30 após a introdução do microfone e já na era dos discos de vinil), João Gilberto – também baiano, de Juazeiro – fez o improvável. Além de rimar “peixinhos” com “beijinhos” em ‘Chega de Saudade’, a bela composição de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, Gilberto cantava bem baixinho, quase sussurrando. A partir de então, os músicos foram libertos da força de seus pulmões.
Na maioria das vezes é assim: a linguagem se adapta a uma transformação tecnológica, e não o contrário. Para isto, no entanto, precisamos de tempo.
Isso é uma verdade até os dias atuais – e, no mundo de constante transformações que temos hoje, diria que é uma realidade quase que diária. Principalmente na minha área, a de fazer vídeos para marcas.
O YouTube foi introduzido em 2005. Em 2007, a plataforma passou a ter publicidade – com a receita dividida com os criadores de conteúdo. Dois anos depois veio a alta definição, 1080p.
Lembro-me do primeiro vídeo em HD que postei no YouTube, ainda em 2009. Na época não existiam câmeras em alta-definição acessíveis, e eu e meu primo Diogo Gameiro (também diretor de filmes) juntamos várias imagens em baixa resolução para criar uma em alta. Eu estava saindo da faculdade e achei aquilo tudo revolucionário.
Em 2011 o YouTube liberou as transmissões ao vivo para todos os criadores de conteúdo. Mais ou menos na mesma época foi a vez do Facebook explodir no Brasil, rede social que introduziu o autoplay em 2013. No mesmo ano, os vídeos (ainda de 15s) também chegaram ao Instagram, com os Stories sendo introduzidos em 2016.
Por tudo isso, virou lugar comum afirmar que o futuro da comunicação pela internet está no vídeo.
Portanto, não foram completados 15 anos que uma série de inovações tecnológicas aconteceram, culminando no cenário no qual 1,9 bilhão de pessoas utilizam o YouTube, assistindo mais de 1 bilhão de horas por dia – os números são do Google, dono do site.
Em meio à tudo isso, não existe uma linguagem vencedora para esses vídeos – até porque, vamos combinar, é natural que não exista uma linguagem dominante na web. Olhando para a minha profissão, hoje existem dois grandes caminhos sendo seguidos. O primeiro é o dos formatos já conhecidos: longas-metragens, documentários, filmes de 30 segundos, programas de TV, tudo em versões para a internet.
Já o outro é o dos vídeos que nascem para entender os números que chegam do big data, pensados para a era dos algoritmos. São os conteúdos de performance, feitos para capturar a sua atenção em cinco segundos, gerando leads para o e-commerce. Produções para serem entendidos com ou sem som, gerando engajamento pelo menor custo. Em ambos os casos são conteúdos que seguem modelos de sucesso – um é o das mídias tradicionais, o outro, dos dados em tempo real, do Big Data, que comprovam a sua eficácia. Por isso passam a segurança necessária para as marcas que investem dinheiro na produção de conteúdo. Os riscos são minimizados e os resultados garantidos.
Voltando à música. Em 1959 não passava pela cabeça de João Gilberto ganhar dinheiro cantando, afinal se sustentava como violonista. Ele cantava por prazer e o microfone possibilitou que ele criasse um novo estilo. Em 2020, as pessoas que começaram a fazer vídeos por prazer já estão encampadas pelas marcas. São os influenciadores do YouTube, Instagram e Facebook. Ganham bastante dinheiro criando conteúdo para falar de marcas e produtos porque são os criadores que melhor usam a nova tecnologia, convertendo-a em engajamento e em resultado.
Se por um lado a indústria se apropriou do poder de influência que estas pessoas têm, ainda explora pouco o método que eles usam para criar conteúdo.Como criador de conteúdo, me interessa muito escutar o processo de criação de vídeos de um youtuber de sucesso. A minha curiosidade é tanta que fiz dela meu trabalho. Meu dia a dia busca saber: como o criador de conteúdo decide os temas que irá abordar? Como ele lê o analytics? O que ele obedece das melhores práticas do YouTube? O que ele ignora? Como ele mantém a coerência de sua persona? Qual o tempo ideal? Quais são suas referências?
Acredito que a melhor forma de produzir um conteúdo para marca em uma plataforma é, também, a melhor forma de produzir conteúdo para uma plataforma. Youtubers não adaptam formatos antigos ou fazem conteúdo de performance. Eles fazem conteúdo com identidade e veracidade.Tenho certeza que, em alguns anos, os grandes players do mercado vão entregar para uma marca o mesmo que os youtubers de hoje entregam para sua audiência. Nesse dia, vamos parar de gritar em plenos pulmões que “isto é bom” e sussurrar os nossos “carinhos sem ter fim”.
Rodrigo Gameiro é head de conteúdo da Spray Content. Jornalista de formação, iniciou a carreira na indústria do cinema com passagem pelas principais produtoras do país. Após uma consultoria, assumiu a gerência de Marketing na Coca-Cola Brasil onde foi o head de conteúdo para todo o patrocínio da marca para a Copa do Mundo da FIFA de 2014. Já atuou como Professor de Branded Content na ESPM-RJ e dirigiu esquetes do Porta dos Fundos. Hoje assume a área de conteúdo da Spray Content, do grupo Spray Media.