A pesquisa elaborada pelo PROPMARK em parceria com o More Grls apontou que a área de criação é a que concentra menos profissionais mulheres no comando, apenas 25%, enquanto no atendimento elas são 69%. Mais do que uma característica da composição do organograma das agências, os dados demonstram um reflexo da sociedade.

A divisão sexual do trabalho foi estruturada historicamente de maneira que homens fossem reconhecidos como criativos e ousados, ao passo que às mulheres sempre coube o papel de atenciosas e servis. Para a psicanalista e professora do curso de comunicação e marketing da Faap, Maria Homem, essas são construções culturais milenares. “É um imaginário pré-histórico. É como se tivéssemos uma premissa biológica. A cultura é como se fosse uma grande massa viva, uma imensa biodiversidade e para mudar demora. Uma coisa que a gente subestima é o tempo de elaboração subjetiva de uma ideia, mudar um conceito é muito difícil.”

Gabriela Rodrigues, creative data leader na Soko: mudança passa por diversificar perfis (Divulgação)

Na opinião de Gabriela Rodrigues, creative data leader na Soko e idealizadora do manual Linguagem Não Sexista na Publicidade, essa divisão é um delineamento de estereótipo de gênero. “O atendimento tem mais mulheres porque parte de um recorte e de uma construção estrutural do mercado. No atendimento isso acontece porque se fala que uma pessoa dessa área tem de agradar o cliente e é o cliente no masculino, porque majoritariamente são homens, cis e héteros, então essa mulher entra quase como um elemento de relacionamento com o homem e, por isso, ela tem um pouco mais de chance de estar nessa área”, aponta.

Ainda de acordo com Gabriela, há outras características inerentes a essa função. “Normalmente é uma mulher magra, alta, loira, de cabelo liso. Uma leitura do que é a beleza tradicional no Brasil, que sabemos que é uma visão problemática. Este não necessariamente é um número positivo quando olhamos o porquê esta mulher está sendo colocada nesta área”, reflete.

A professora Maria Homem enxerga duas formas de mudar este panorama binário. A primeira, diz, é a conscientização da história. “Só entendemos algo quando simbolizamos todo o passado, não acreditamos que é assim porque é. A gente desnaturaliza isso. Temos de fazer a arqueologia da história que nos foi contada, que foi construída por nós. E um segundo projeto, que é: vamos fazer uma contrapropaganda, uma contranarrativa?”, provoca.

Uma saída, sugere, seria o reforço do conceito de que mulheres são inovadoras e criativas. Outro ponto, comenta Ana Mattioni, fundadora e diretora criativa do estud.io, seria a assunção de mais mulheres em cargos de liderança.

Maria Homem, psicanalista e professora de comunicação e marketing da Faap (Divulgação/Alf Ribeiro)

“As equipes são muito masculinas e cresceram entendendo que os homens dominavam essa relação de poder. Eles normalmente se posicionam com mais segurança e agressividade. Quando as mulheres fazem isso são vistas de forma negativa. A proposta de ter novas lideranças femininas é uma necessidade do mercado”, diz. Para Gabriela, além de se contratar mulheres para a criação e em cargos de decisão, a mudança do cenário passa também por diversificar o perfil das profissionais das agências. Hoje, 96,7% das líderes são brancas.

“Até dois anos, a grande pauta que tínhamos era a não- -presença de mulheres na criação, mas não qualificávamos de quais mulheres estávamos falando. Isso fez com que o mercado entendesse que precisava contratar mulheres, o que aconteceu, mas aquelas que começaram a chegar nessas posições foram as brancas”, reflete.

Segundo a criativa, atualmente o mercado discute a responsabilidade dessas líderes baseada também na pauta de raça. “Falta essa conscientização de reponsabilidade, de que você pode e deve se posicionar de forma antirracista em espaços que uma pessoa negra não tenha condições de fazer isso e é importante que as lideranças femininas brancas entendam que a gente precisa de uma postura delas também. Desmistificar lugar de fala e entender uma responsabilidade de raça são duas das coisas mais urgentes que temos em nosso mercado, porque é assim que mexemos na base”, aponta.

Grupos como o Mad Women, criado por Ana Mattioni, servem como lugar de troca de experiências, apoio e de busca por oportunidades. “Este foi um projeto que começou de um desabafo, de querer encontrar outras mulheres na criação para trocar ideia. […] Começaram a surgir discussões sobre salário e fazíamos planilhas anônimas para ver o quanto a gente ganhava e comparávamos com os caras das mesmas posições e agências. Começamos a nos movimentar por ver que alguma coisa estava muito errada”, relembra, mencionando a origem da comunidade no Facebook.

Ana Mattioni, fundadora da estud.io e idealizadora do grupo Mad Women (Divulgação)

“Hoje temos mais de seis mil mulheres no grupo, todas ligadas à criatividade, em agência ou não, mas as discussões evoluíram bastante. A gente fala muito mais sobre campanhas, vaga de empregos e abrimos espaços de conversa ali dentro, que reverberam para fora”, aponta.

Clichês
Muito propagado nos últimos anos, o conceito de diversidade vem sendo colocado em xeque. Gabriela aponta, inclusive, que este é um termo “perigoso”. “Eu não gosto quando uma pessoa entra numa agência e não faz parte do padrão ou é lida como ‘da diversidade’. Mais saudável e construtivo que isso é o termo proporcionalidade. Eu não preciso ter duas mulheres na criação como muitas agências acham que está bom, eu preciso no mínimo de 50% a 52% porque é o percentual de mulheres que tem no país. E isso com quaisquer outros recortes que a gente adote”, vaticina.

Outro conceito que precisa ser revisto é o de empoderamento. “O termo é válido para algumas situações. Quando falamos de inclusão no mercado não é mais só sobre empoderamento. O termo que usamos é inclusão e como você faz essa integração. O empoderamento dá muita responsabilidade para a mulher. O termo é válido, mas é opressor”, diz Ana.

Gabriela aponta que existe o lado positivo na massificação da palavra, mas que, conforme é repetida, vai se esvaziando de significado. “Eu sempre tive poder. A questão é que me cerceavam para exercê-lo. Temos de tomar cuidado para não entendermos que alguém está dando este poder para a gente”, adverte.

Outra lógica que surge no debate é a da competição entre os gêneros. “Os homens se assustam muito com o que eles chamam de feminazi porque eles fazem a leitura de que essa vontade de ‘poder também’, de ‘poder junto’, de ‘poder com’, significa que elas estão dizendo para eles: ‘você vai poder menos’”, reflete.

Planilha
Não é novidade a rotina exaustiva nas agências, a cobrança por resultados e a disparidade de salários. Há cerca de três anos, no entanto, as angústias dos funcionários ultrapassaram o ambiente de trabalho e foram escancaradas em uma planilha distribuída no online.

Na edição de 2020, divulgada no fim de janeiro, não faltaram desabafos sobre machismo, racismo e assédio. Ainda que controversa, a lista é uma forma de as pessoas se expressarem e denunciarem casos de abusos.

Para Ana, a planilha preocupa e alerta, mas acredita que nem todas as agências a levam a sério como deveriam. “Existe um discurso que é: se a pessoa quisesse mudança, não falaria anonimamente num lugar onde todo mundo vê porque parece que é para difamar a agência.” Para ela existe este perfil, mas há ali um reflexo do mercado. Cada vez mais, diz Ana, os CEOs serão obrigados a realizar mudanças. “Se ela não vem pelo RH ou pela matéria do PROPMARK, ela virá no anônimo mesmo”, analisa.

Apesar de ter ressalvas quanto à planilha, Gabriela entende que esta é uma forma de pressionar as agências por novas atitudes. “Não sei dizer até que ponto tem um impacto direto. O que eu sei é que aumentando assuntos sobre isso no mercado acelera-se o processo de mudanças. Discordo dos linchamentos, mas entendo a importância enquanto exposição de um sistema”, reflete.

Cancelamento
Na esteira da agenda sobre gênero, um fenômeno tem chamado a atenção, principalmente nas redes sociais. A cultura do cancelamento, que é o ato de boicotar pessoas e marcas por declarações de cunho preconceituoso ou ofensivo.

“Eu queria ter esse botão na vida real”, diverte-se a professora Maria Homem. “Não acho que seja saudável. É um mecanismo de defesa, é desesperado, não é diálogo, é a ruptura do jogo, mas é sintoma de uma era”, pondera.

Gabriela segue a mesma linha. “Cancelamento é parte de uma estrutura compreensível do país. Crescemos sem acesso à educação de qualidade. Essa discussão não chegou nem às faculdades de comunicação, então a gente vai para a internet, que é uma válvula de escape, um meio de expressão. Não acho que seja a forma mais eficaz de fazer uma mudança, mas entendo que é um meio para discutirmos essas pautas enquanto tentamos achar um caminho eficaz. Com o cancelamento, a gente ainda não constrói a informação”, pondera.

Para Ana, apesar de ser um tema polêmico, marcas e pessoas têm responsabilidade social quando comunicam. “Temos de cobrar a responsabilidade tanto de marcas como de pessoas públicas, que ganham dinheiro com a nossa audiência. Acho legal que tenhamos cada vez mais isso de que: se vai contra os meus princípios, eu não consumo. Isso muda de fato o comportamento da sociedade, das marcas e empresas. Agora, eu também sou a favor da segunda chance e do pedido de desculpas honesto”, conclui.