Nas últimas semanas, aumentaram os exemplos de que finalmente se expandem os sinais de que a miopia em relação ao digital, que se espalhou pelo mercado publicitário mundial, começa a ser curada de forma substancial, com o aumento da visão crítica sobre esse “novo mundo” e a revalorização do que sempre funcionou muito bem – e continua funcionando. Duas manifestações de forte valor simbólico dessa mudança de postura vieram as de líderes de agências e de anunciantes.
Martin Sorrell, fundador e CEO da WPP, declarou ser ultrajante a postura do Google e do Facebook em afirmarem que não tinham nada a ver com as notícias falsas publicadas em suas plataformas recentemente e não eram responsáveis por nada que é postado por seus usuários. Essa fluidez moral e ética dos principais players digitais realmente assusta e chega ao limite da desfaçatez.
Eles alegam não ter nada a ver com o conteúdo que disseminam, por mais falso e perverso que seja; apresentam contas saídas de uma inexpugnável caixa-preta em relação a seus números de audiência, sobre os quais a mídia neles veiculada é planejada e as faturas publicitárias são emitidas – e ainda alegam que não houve prejuízo aos anunciantes quando erros importantes são revelados; pouco ou nada fazem para inibir a ações dos adbots, que geram um número imenso de tráfego não humano e fraudes de proporções gigantescas; e se enfiaram com gosto em outra caixa-preta, a da mídia programática, que retira recursos dos anunciantes e chega a destinar apenas 30% aos websites que de fato veiculam as mensagens.
Sorrell pontuou, durante uma palestra, que as empresas digitais precisam mudar urgentemente de postura, inclusive para merecerem o grande volume de publicidade a elas direcionada. E bateu, uma vez mais, no fato de que as mídias ditas tradicionais estão longe de estar vivendo seus últimos dias, pois têm seu papel assegurado no mix de mídias, em especial a televisão, com seu imenso alcance e capacidade de engajamento.
Outro líder do negócio publicitário que alertou sobre os problemas do digital foi o CMO global da Coca-Cola, Marcos de Quinto, que reafirmou a crença na força da televisão e anunciou revisão nas estratégias dos últimos anos de colocar muito esforço no digital. Falando em um evento da indústria de bebidas, Quinto afirmou que o ROI da TV para sua empresa continua a ser o melhor entre todas as mídias: “obtemos US$ 2,13 para cada dólar investido na TV, comparando com US$ 1,26 no digital”.
Ele pontuou que inserir uma empresa como a sua no universo digital é mandatário, mas isso não significa encher as mídias sociais com mensagens. Aliás, pelo contrário, pois as organizações que enfatizam sua comunicação nesse meio geralmente não têm uma boa estratégia e prática digital. Essa revisão de uso do digital, no caso da Coca-Cola, pode no final até não representar redução nos investimentos nessa área, mas significa que haverá mudanças importantes na forma de usar essa mídia e uma revalorização nas mídias tradicionais, além de reenfatizar as abordagens criativas, para colocar o produto e a marca novamente no centro da narrativa publicitária.
Esses depoimentos tão relevantes de personagens tão importantes no panorama global do marketing e da propaganda reforçam a necessidade do mercado publicitário adotar uma postura mais crítica com o digital, reduzindo a onda de benevolência com esse meio, que ainda não adotou os padrões de comportamento comercial que prevalecem nas demais mídias; alertam para a necessidade de usar o digital segundo os sólidos critérios estabelecidos para os demais veículos de comunicação; lembram que o alto impacto e a profunda conexão das mídias tradicionais com seus espectadores e leitores têm grande valor para as marcas anunciantes; e deixam claro que a melhor solução, via de regra, é a de estabelecer um mix de mídias adequado para cada produto, mercado e tarefa.
Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafael.sampaio@uol.com.br)