Uma noite de sábado à noite e o Itaú Cultural se prepara para receber mais um show do Estéreo Saci, projeto que trabalhou os conceitos de lixo, moda e preconceito, neste mês. Em meio ao show, sobem ao palco as modelos da Daspre, com peças produzidas pela grife. Animadas, esbanjando beleza e simpatia, as meninas, escolhidas em concurso, se apresentam, emocionando a plateia.

A marca social, criada pela Fundação Prof. Dr. Manoel Pedro Pimentel de Amparo ao Preso (Funap), desfilou bolsas, cachecóis e ponchos. O portfólio, porém, é bem extenso, com peças como edredons, bonecas, roupas, tricôs e uma série de objetos artesanais. Além de divulgar a produção, a Daspre conseguiu atrair a atenção da Globo, que fez uma chamada sobre o desfile da marca uma semana antes de início do São Paulo Fashion Week. Foi o suficiente para Lucia Casali, diretora executiva da Funap, estabelecer um desafio: “A minha meta é no ano que vem colocar a Daspre no Fashion Week. Não custa sonhar. Vamos ver”.

É um projeto ambicioso, diante da rejeição que a marca tem entre o público das classes A e B, que correspondem pela maioria no evento. Casali se recorda de uma ocasião, no Shopping Iguatemi, em São Paulo, na qual as pessoas, ao saberem que as peças eram produzidas por presas, “largavam como se estivessem com lepra”, nas palavras da procuradora aposentada. A população da classe C para baixo forma o público da marca, que comercializa produtos com valores diversos, a partir de R$ 3,00 até cifras superiores a R$ 100,00, na loja e em bazares.

A marca surgiu em 2008, após a Funap conseguir 15 máquinas de costura, como parte de um acordo. A ideia, à princípio, era fazer um bazar de Natal com as peças produzidas por presas que haviam sido convocadas da unidade prisional do Butantã. O nome, porém, ainda não existia. Foi quando Casali, observando uma sacola da Daslu, pensou em “Daspre”. “Foi um sucesso com a mídia”, explica. O slogan “A grife que liberta” veio em seguida, criado pelas próprias detentas. Desde o surgimento, o projeto só cresceu. Além da oficina na Funap, onde são produzidas as peças-piloto, hoje existem outras cinco, uma na unidade do Butantã, duas em Santana e duas em Tremembé, divididas nos centros I e II. No total, são aproximadamente 120 presas trabalhando.

O faturamento também acompanhou, fechando em torno de R$ 180 mil no último ano, valor próximo do necessário para o projeto se tornar autossustentável. Os recursos são direcionados ao pagamento das presas – que recebem três quartos de um salário mínimo – e ao material usado na produção. O desejo da procuradora aposentada é desenvolver uma coleção para dar mais visibilidade ao trabalho. “Se eu achasse algum designer que quisesse fazer uma minicoleção eu entraria de cabeça”, disse. A identidade do projeto não é o faturamento, explica Casali. “O foco é elas terem capacidade de se recuperar, que elas tenham chance de mudar de vida”, explica.

A mesma opinião é compartilhada por Miriam, de 28, presa e há oito meses na Daspre. “É um bom começo para uma vida nova. É uma oportunidade boa que a gente está tendo de mudar de vida, um aprendizado”, diz, ansiosa pelo regime aberto, previsto para o próximo ano, e para recomeçar a vida próxima das duas filhas. “Quero trabalhar, valorizar mais a vida, a família. É hora de mudar. Aqui, é uma porta para a gente sair ressocializada”.
Já Ivonete, 37 anos, aproveita a Daspre para se conhecer. “Descobri que sou mais inteligente do que eu era. Descobri uma inteligência boa”, afirmou. Entre idas e vindas, ela foi condenada por falsificação e cárcere privado. “Hoje estou outra. Ninguém precisa passar pelo que passei”. No projeto, está há 10 meses. A sua atividade predileta é costurar. 

A experiência foi valiosa também para Viviane, de 34 anos, que acaba de sair da prisão. Ela cumpriu quatro anos e 8 meses, dos 16 e 8 meses da condenação – a  redução de pena de um ano, pelos trabalhos desenvolvidos, e o bom comportamento ajudaram a agilizar a saída. “É uma oportunidade de vida. Aqui envolve tudo: respeito, conhecimento e autoestima. Não sabia nem pegar em uma agulha. Foi uma das melhores experiências”, disse. Viajada e com nível elevado de conhecimento, Viviane, ex-aluna de direito e de administração de empresas, agora pretende retomar a vida de empresária, com a franquia de uma rede de supermercados. Questionada se daria oportunidade a pessoas egressas da prisão, foi taxativa: “Daria. São muitas mulheres que querem mudar de vida. Aqui na Daspre eu diria que todas”.

De acordo com a doutora Casali, das mais de 1.500 mulheres que passaram pelo projeto, nenhuma retornou ao sistema prisional. Ela comemora o projeto com um exemplo: “Um dia apareceram uns estudantes de publicidade sugerindo a mudança de nome da marca. O “Das” estaria gasto. Aí, fui conversar com as presas para ver o que achavam e uma delas me deu uma resposta que eu entendi perfeitamente o que ela estava falando. ‘A Daspre é um patrimônio nosso, a senhora não pode mudar o nome’”, entusiasma-se. E, logo em seguida, recebeu um abaixo-assinado da população carcerária masculina, para a criação do Dospre. A marca já começou a produzir. O lançamento deve acontecer em um bazar, no Natal, quando peças de marchetaria como cavalinhos de madeira, casas de passarinho, entre outras, serão exibidas.

O nome da marca é uma alusão à Daslu, famosa por luxo e por escândalos jurídicos. A primeira “homenagem” à loja de departamento paulistana foi feita pela ONG Davida, com a criação da Daspu, em 2005, o que quase resultou em querela judicial, sob a justificativa de “denegrir” a imagem da empresa. Com o fato, a ONG carioca, defensora dos direitos das garotas de programa e a favor da prevenção das doenças sexualmente transmissíveis, ganhou visibilidade e se expandiu, recebendo apoio da mídia e da classe artística. O lançamento de coleções diversas, com direito a muitas frases de duplo sentido e a modelitos ousados, repercutiu e a marca alcançou voos internacionais, tornando-se a marca “Das” mais reconhecida.  A Daspu e a Daslu não retornaram o contato até o fechamento desta edição.

Dasdoida enfrenta problemas

Com a proposta de fazer com que pessoas com transtornos mentais expressem as suas artes interiores, nasceu a Dasdoida, em 2007, promovendo experimentações em artesanato, música, fotografia e cinema. O segmento da moda, no entanto, foi o mais receptivo ao projeto, que apresentou coleções mostrando a criatividade dos pacientes. Ganhou visibilidade, principalmente com a participação na novela “Caminho das Índias”, de Glória Perez. O sucesso foi para o bem e para o mal. “Foi muito bacana. Por um lado, acho que continuamos trabalhando por esta novela. Por outro, perdemos o lugar pela ciumeira que aconteceu”, afirmou Júlia Catunda, psiquiatra e uma das criadoras da Dasdoida.

Segundo ela, o número de pessoas solicitando entrevistas e querendo realizar projetos e TCCs sobre a iniciativa gerou uma reação que chegou, inclusive, a questionar os métodos desenvolvidos com os pacientes. O jeito foi pedir transferência do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) de Itapeva, onde o projeto era realizado. Com isso, a produção regular sofreu uma queda desde setembro do ano passado.

Atualmente no CAPS de Embu das Artes, a psiquiatra pretende retomar e fortalecer a marca. “Somos um grupo terapeuta. Mas percebemos que se não se tem ideia mais empresarial, é difícil você se manter. Agora estamos trabalhando para estruturar isso. Mandando projetos para conseguir doações”, disse.

Aos poucos, a produção continua e novas ações são desenvolvidas, tendo a Dasdoida como guarda-chuva. Com parceiros, a marca produziu o Psiquesexycine, exibição e produção de filmes que une ingenuidade e sexualidade; participa de bazares; e criou o “bem bolado”, iniciativa que mescla cinema, música e moda, no CAPS atual. “A nossa proposta é a loucura como motor de criação. Apostar na experimentação e ocupar todos os espaços”, refletiu Catunda. Ela recordou que alguns pacientes já desenvolvem e comercializam os seus produtos sozinhos, levando o nome da marca e criando a sua própria economia. “É muito mais a construção do ser humano do que só a arte”, explica.
De acordo com a psiquiatra, a marca tem penetração em todos os segmentos. “As pessoas gostam. A loucura tem uma simpatia. Quando o trabalho está bacana, vende”, finalizou.

por Marcos Bonfim