Começou o Brasileirão. E eu morro de vergonha porque estou feliz do meu Santos não ter perdido. Quando eu escolhi ser santista eu tinha tanto orgulho do time que morria de vergonha quando o Santos não goleava. Lembro-me de quando era criança e ia dormir triste quando meu Santos ganhava de menos do que três gols de diferença. Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Jamais os gramados do mundo vão ver coisa parecida. E não sou eu quem diz. É quem teve a sorte de ter vivido esta época. Um tempo que, quando o time da casa apanhava do alvinegro praiano por uma diferença de poucos gols, saía de campo aplaudido pela torcida. Eu falei do ataque. Injustiça com a defesa, que tinha Gilmar, Zito, Mauro e tantos outros craques. O Santos de hoje é apenas mais um time de futebol. Que pode perder, pode ganhar, pode jogar bonito ou feio, mas jamais será o Santos daquele tempo. Já pensei em encontrar outro clube para torcer, desiludido com o meu, rebaixado à condição de time, não orquestra de deuses do gramado. Exagero? Não. Se você não teve a sorte de ver o elenco daqueles bailarinos vestidos de branco, que admitia apenas um concorrente, o Botafogo, você não pode imaginar do que estou falando.
Sobraram poucos registros. Mas minha memória guarda um fim de campeonato que nos últimos três jogos o Santos marcou 19 gols. Era tudo o que um garoto torcedor pode querer na vida. Um dos jogos eu vi, Santos 6 x Juventus 2. Na Rua Javari, campo do Juventus. Os outros ouvi pelo rádio, incluindo um Santos 8 a 0 contra o Nacional. Hoje já me dou por satisfeito com míseros 2 a 1 e me horrorizo com minha alegria ao pensar diante de uma diferença ridícula de 1 gol que “pelo menos ganhamos”. Estou muito velho. Vitória por uma diferença de um gol, no meu tempo, era para sair debaixo de vaia. O problema é que um ser humano pode trocar de marido ou de mulher, de crença religiosa, de pai ou de mãe, de pátria. Mas é mais difícil trocar de time. Luiz Fernando Veríssimo, que acha uma barbaridade briga de galo, numa viagem qualquer viu-se numa rinha, completamente constrangido. Bastou um galo de penas vermelhas começar a bater num outro meio alvinegro e Veríssimo começou, para o próprio espanto, a torcer aos gritos pelo vermelho. Roberto Drummond já escreveu que se houver uma camisa preto e branca pendurada no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento. Nelson Rodrigues uma vez garantiu que se o Fluminense jogasse no céu, ele morreria para vê-lo jogar. É dele também um imorredouro comentário na televisão: “O Fluminense é o melhor time deste campeonato. Se os fatos me contradizem, pior para os fatos”.
Eu tive um motorista, o Saulo, que sabia todas as escalações do Botafogo desde que ele se tornou alvinegro. Minha mulher, doce criatura, formada em tradicional colégio de freiras em Belo Horizonte, manda com a maior tranquilidade o juiz enfiar o apito no cu da mãe caso ouse marcar um simples impedimento contra o Vasco. Uma vez, na Espanha, jogavam Real Madrid e Barcelona. Um torcedor do Barça, que estava com o filho e o neto assistindo o jogo, teve uma síncope quando o Real Madrid marcou um gol e morreu. Entrevistado pela televisão um repórter perguntou ao filho do morto como ele estava se sentindo. A resposta foi: “esta é a prova de que uma desgraça nunca vem sozinha”. Uma vez, numa palestra, resolvi fazer uma metáfora para explicar melhor um ponto de vista. E fiz a grande besteira de inventar uma história que o Palmeiras perdia para o Corinthians. Fui interrompido por um grito vindo da plateia: “arruma outro exemplo, porra!” Falou mais forte o coração alviverde daquele aluno/torcedor. E ele tinha razão, pois até nas metáforas a gente tem de respeitar a paixão dos outros. Bem, encerro por aqui a minha curta carreira de comentarista esportivo. Um pouco bravo com o Juca Kfouri, que fez um apanhado dos clubes com alguma chance no Brasileirão e nem tocou no nome do Santos.
Lula Vieira é publicitário, diretor do Grupo Mesa e da Approach Comunicação, radialista, escritor, editor e professor (lulavieira.luvi@gmail.com)