Ao longo dos últimos anos fomos apresentados a essa nova “entidade” controladora de nossas vidas: Vossa Excelência, o algoritmo. Ele se transformou numa espécie de fatalidade, de destino. A promessa é mais ou menos a seguinte: entendendo quem você é, conhecendo seus hábitos e suas buscas, empresas, políticos e “movimentos” se tornam cada vez mais eficientes na tarefa de antecipar o seu desejo ou, no pior cenário, manipulá-lo.
O subtexto é simples: você é uma pessoa risivelmente previsível. O algoritmo seria apenas o mapa da sua previsibilidade. Eu sei o que você fez no verão passado e aposto que saberei (dado que você não é lá uma pessoa muito surpreendente) o que pessoas “do seu tipo” vão fazer no verão seguinte. Darwin mostrou que dois lagartos idênticos, separados e vivendo em ilhas apartadas, tomam caminhos evolutivos completamente distintos para se adaptar a meios diferentes. Se substituirmos “ilha” por “bolha”, veremos que, tais como os lagartos de galápagos, tendemos a nos parecer cada vez mais com os répteis da nossa ilha e nos distinguir dos irmãos lagartos da ilha ao lado. Talvez passemos até a devorar o outrora nosso parente na primeira oportunidade. O problema com a previsibilidade é que ela nos torna criaturas desinteressantes.
Os biomas mais ricos são os mais diversos. A Amazônia é mais rica do que o Saara em função de sua diversidade de fauna, flora, minerais, variações climáticas, rios etc. Restrito ao algoritmo, você aos poucos se transforma num deserto de ideias e passa representar fielmente o estereótipo da sua ilha: um lagarto típico. Regina Casé costuma dizer em suas palestras que é o terror dos algoritmos. Por quê? Porque suas amizades e interesses abrangem leques de gente tão amplos que dificilmente se encontrariam para tomar um chope. Regina funciona como uma espécie de elo entre as ilhas. O algoritmo pira com Regina Casé porque ela não respeita a geografia bem demarcadinha das ilhas e das bolhas. Regina Casé é amazônica! Na década de 1970, o neurocientista Paul MacLean apresentou a teoria do cérebro dividido em três unidades, que seriam na verdade três camadas históricas. A camada mais recente seria o neocortex, responsável pelas funções executivas, pelo pensamento abstrato e pela inventividade; a camada intermediária seria o sistema límbico, o cérebro dos mamíferos, responsável pela afetividade; e a camada mais arcaica, o cérebro reptiliano (que compartilhamos com os répteis), responsável pelas respostas instintivas e emoções mais primárias: agressividade, falta de empatia, raiva e medo.
Desconfio que aprisionados em nossas ilhas, nos comportemos cada vez mais como répteis, destilando emoções primárias e nos distanciando da capacidade de gerar as pontes afetivas dos mamíferos e embotando definitivamente a inventividade e capacidade de pensamento lógico do neocortex demasiadamente humano. Os lagartos ilhados tornam-se neofóbicos: toda diferença e novidade é encarada como ameaça. Na “bolha” agimos como animais de sangue frio. O algoritmo é ilha que esfria nosso sangue e desumaniza porque reforça o réptil em nós. Então, aproveitando que o ano apenas começa, sejamos mais amazônicos e menos desérticos. Sejamos mais humanos e menos répteis frios. Sejamos menos previsíveis e mais interessantes! Vamos enlouquecer os algoritmos com mais improbabilidades, experimentando mais, convivendo mais, destruindo muros, construindo pontes. Desalgoritme-se!
Flávio Cordeiro é sócio e diretor de planejamento estratégico da Binder (flavio@binder.com.br)