Cada vez que é divulgada uma “pesquisa” sobre o digital e seu espetacular crescimento, que estaria condenando os demais meios e se tornarem irrelevantes em pouco tempo, é enorme a sensação de que se está diante de um espetáculo de prestidigitação, sem relação robusta com a realidade factual. De forma talvez intencional, essas “pesquisas”, enquetes e estudos claramente inflam os resultados observados, transformam o que é parcial nos hábitos da sociedade para todo seu conjunto, misturam a utilização instrumental e de serviços do digital com seu consumo por informação editorial, de entretenimento e publicitária.

De um modo geral, essas “pesquisas” misturam consumo em algum momento e para alguma finalidade, que é claramente crescente, com o volume e abrangência de utilização. Ou as “pesquisas” não medem toda a extensão do fenômeno, pois não foram desenhadas para isso, ou, o que seria ainda pior e mais desonesto, elidem as informações capazes de fazer uma comparação mais precisa sobre os demais meios.

Refém de sua estratégia de oferecer os seus serviços de forma gratuita, parcialmente gratuita ou barata e de um modelo de cobrança por “resultados” da publicidade veiculada, o digital precisa desesperadamente inflar seus números, o que é feito por esse gênero de “pesquisa” que mais se assemelha a um espetáculo de prestidigitação, a partir de critérios de visibilidade suspeitos e não acordados com o conjunto da indústria, às práticas de sourced traffic, à caixa-preta da mídia programática e à fraude.

A mais recente dessas “pesquisas” divulgadas teve origem na terceira edição do Video Viewers, realizada pela Provokers, que afirma que a cada dez horas que os brasileiros dedicam a ver vídeos, mais de quatro são online, que 42% do população tem o hábito de ver vídeos na internet, percentual que já superaria a audiência da TV por assinatura e “ainda” ficaria atrás da TV aberta. Bem atrás, o “estudo” esqueceu de pontuar, pois o hábito de audiência desta mídia está na faixa de 93%, segundo fontes bem mais robustas (que indicam que a audiência da TV por assinatura, aliás, é de 47,9%).

A primeira dúvida é sobre a própria fonte da pesquisa, a Provokers, que é uma empresa de assessoria de branding, insights e afins (aparentemente fundada em Buenos Aires e com operações em sete países da América Latina). Não há registro dela como associada à Abep ou à Esomar, por exemplo, que são as entidades que representam as organizações especializadas em pesquisa, que adotam os padrões mais robustos de atuação nessa área.

A segunda é sobre a abrangência e a amostra da pesquisa, que não fica muito clara e traz informações divergentes. O release informa que foram ouvidos 1.500 brasileiros, entre 14 e 55 anos, das classes A, B e C, em cinco capitais (SP, Rio, Porto Alegre, Salvador e Recife), amostra que representaria 61% da população. Nada disso bate. A população dessas cidades é cerca de 12% da população (seria 22,5%, se fossem as regiões metropolitanas dessas cidades…).

Todas as demais afirmações da “pesquisa” ficam, portanto, comprometidas, inclusive a “grande novidade” de a internet superar em hábito de consumo de vídeo a TV por assinatura, que a “maioria dos brasileiros conectados”, 59%, acredita que o YouTube poderia substituir a TV aberta, que 59% dos internautas prefere ver anúncio no YouTube e 34% experimentaria um produto comentado por um youtuber, contra 27% quando recomendado por uma celebridade da TV. A verdade é que falta credibilidade a essa e à grande maioria dos estudos sobre o consumo de vídeos no meio digital que, ainda por cima, pouco falam sobre a real extensão do consumo específico de publicidade, que com o adblock e a opção de pular o vídeo em poucos segundos está muito longe de superar a força publicitária da TV, como todos nós sabemos. Não sem razão, a TV aberta continua superando os 72% de share no mercado da publicidade.

Rafael Sampaio é consultor em propaganda (rafael.sampaio@uol.com.br)