A crise do covid-19 tem despertado uma visão sobre a criatividade, em que os profissionais podem assumir funções que vão muito além da publicidade, sendo capazes de oferecer soluções reais e viáveis para a melhoria da vida das pessoas e da sociedade. Embora seja um discurso antigo, e expresso de alguma forma em diversos projetos já realizados, e muitos deles focados em premiações publicitárias, a pandemia mundial tornou necessária a aplicação prática desse ideal.
Na maioria das agências, desde que a pandemia começou, o foco dos profissionais têm se voltado a encontrar novos formatos, serviços, produtos e soluções para as marcas serem úteis à sociedade, e também encontrarem uma nova maneira de dialogar com as pessoas.
Palco de muitas dessas ideias, o Festival Internacional de Criatividade de Cannes criou a plataforma “Creativity Moves Us Forward”, em que profissionais criativos de todo o mundo podem compartilhar ideias de como o pensamento rápido, atos de bondade, inventividade e compaixão podem ser aplicados em tempo real para solucionar alguns dos problemas que estamos enfretando coletivamente nessa nova realidade de covid-19.
Algumas das ideais da plataforma, destacadas pelo executivo, são as destilarias que produzem desinfetantes para as mãos, festivais virtuais de música, máscaras de rosto impressos em 3D. “Estávamos ouvindo histórias incríveis de como as pessoas estavam usando a criatividade para impulsionar o progresso durante esses tempos difíceis. Histórias de invenção, colaboração e compaixão. Queríamos criar uma plataforma na qual a indústria pudesse se unir, compartilhar e aprender uns com os outros. Tivemos uma resposta ótima à plataforma. É realmente impressionante e emocionante ver como as pessoas estão usando o poder da criatividade para superar o problema comum que todos enfrentamos”, diz Simon Cook, managing director do Cannes Lions.
A plataforma funciona em tempo real, e o conteúdo reflete uma situação global que ainda continua a mudar em alta velocidade. As palestras, trabalhos e ideias apresentados são selecionados semanalmente para garantir que sejam tão relevantes e inspiradores quanto possível. naquele momento. “Esperamos que continue incentivando uma cultura de compartilhamento e colaboração, algo que beneficiará a todos a longo prazo”, reforça Cook. “O mundo precisa de criatividade agora, mais do que nunca, e a indústria está realmente usando-a para impulsionar o progresso. Eu gostaria que a plataforma desse esperança e inspiração à nossa comunidade quando mais ela precisa. O legado será o lembrete permanente da engenhosidade e espírito humano, e o poder duradouro da criatividade para superar as adversidades”, resume.
Colaboração
No dia-a-dia do mercado brasileiro, os profissionais do setor estão lidando com novos paradigmas que testam teorias que antes eram bradadas a quatro ventos. “É um momento de prova pra criatividade. Não só estamos vendo o poder de transformação da criatividade, mas percebendo que ela pode vir de todos e de qualquer lugar. De todas as esferas da sociedade e de qualquer lugar do mundo”, opina Milena Zindeluk, diretora de criação da NBS.
A profissional diz que, desde a primeira semana de quarentena, o setor de criação tem elaborado e compartilhado relatórios com ajuda de BI e Planejamento para achar soluções para os negócios dos clientes, e insights sobre como eles podem ajudar a sociedade nesse momento, seja através de doações, ações combinadas com outras empresas, ajuda a microempreendedores ou até todo o trabalho de transição pra soluções de e-commerce. Na Páscoa, houve uma ação com diversas marcas, incluindo o cliente Ferrero, promovendo o #vaiterpascoa, que estimulava as famílias a se unirem virtualmente.
Ela nota um legado na questão da colaboração e da cultura digital, que passarão a ser mais comuns na sociedade. “Uniões antes impensáveis estão acontecendo. Marcas e fábricas se unindo e compartilhando expertise para produzir produtos necessários pra esse momento”, reforça.
Para Alexandre Ravagnani, Diretor-Executivo de Criação da Repense, nunca houve um momento tão oportuno para mostrar que a criatividade pode ajudar numa causa e num momento como este. “Agora é o momento de provar que boas ideias realmente podem mudar o mundo. As discussões passaram a ser como podemos minimizar a dor, agradecer, sugerir soluções e quem sabe mudar a vida de algumas pessoas. Acredito que estamos amadurecendo e colocando a publicidade em perspectiva. Gasta-se muito dinheiro em posicionar as marcas e muitas vezes sem um propósito ou causa. Vemos que as marcas podem ser mais protagonistas nas discussões pelo que mais importa no mundo, que são as pessoas”, avalia.
Na agência, algumas das iniciativas foram a interrupção da linha de montagem da fábrica de eletrodomésticos da Mondial para ajudar na producão de máscaras para os profissionais da saúde. Para o Itaú, a agência está criando novas abordagens como pacotes e planos customizados para os profissionais de saúde, além de mudar a abordagem em situações financeiras extremas que muitos estão passando nesse momento. Com Pernambucanas, a Repense trabalha com conteúdos como cursos online profissionalizantes, por exemplo.
Digital
Ravagnani afirma que um dos legados será o digital, que deixou de ser um bicho de sete cabeças. “Passamos a entender que dependemos dele para nossa longevidade, para sermos mais competitivos e para parar de achar que só onde tem verbas acima de muitos dígitos é que tem alguma solução criativa ou confirmação de retorno. Hoje pode valer mais a agilidade do que ser impecável e minimalista ao extremo”, resume.
Para Paula Perego, redatora da Talent, há algum tempo os projetos que resolvem problemas reais têm ganhado força e destaque, mas daqui pra frente, esse movimento se acentua. “A Claro foi um cliente nosso que teve muitas iniciativas pra ajudar a sociedade neste período. Abriram os canais de TV para garantir o entretenimento das famílias e reforçar as fontes de informação, liberaram o Wi-Fi em locais públicos e em aeroportos e reforçou o atendimento digital de seus serviços para que as pessoas possam continuar em casa”, conta. Os legados para a agência, acredita, serão de grande impacto. “Acredite ou não, os clássicos brainstorms nas salinhas, que agora são virtuais, estão muito mais eficientes. Todas começam na hora marcada e são mais ágeis. A tecnologia ajuda muito. Acho que, apesar da distância, estamos ainda mais próximos e mais rápidos”, resume.
O CCO da Peppery, Jairo Anderson, aponta que embora a criatividade tenha por objetivo resolver problemas, às vezes, pensava-se que o briefing da vez era o maior problema do mundo. “Mas aí, chegou uma pandemia global e a gente viu o que é um problema de verdade. Foi muito importante pensar nisso pra não cair no tipo de armadilha para o qual a nossa criatividade pode nos levar. Porque quando a gente é criativo mas não é empático nem genuíno, a gente erra feio. Acho que redescobrimos essa “função utilitária” da criatividade”, afirma.
Na agência, desde o início da quarentena, Anderson diz que houve iniciativas como uma com o Hospital Infantil Sabará, em que se usou as redes do hospital para dar visibilidade a contadoras de histórias que estavam fazendo lives para as crianças.
Para ele, a cultura digital e a colaboração ganham impulso. “Por necessidade, a linguagem digital, mais dinâmica e mais objetiva, vem ganhando força em espaços mais tradicionais. É bonito ver como uma imagem captada via celular pode, sim, transmitir uma emoção genuína. E não tenho dúvida de que tudo isso só é possível com muita colaboração”, analisa. “Sinto muita falta de estar com o time em uma sala abafada, depois de horas e horas buscando uma ideia. Por outro lado, o futuro ainda é muito incerto, e esse cenário pode ser a nossa nova realidade”, diz.