Estavam Catacrese e Anáfora conversando nas linhas de um texto que certo cronista escrevia à moda antiga, num bloco de notas usando lápis número dois.
– Quer saber? Eu vejo a tua importância muito maior que a da Metáfora de que tantos falam – declarou a Anáfora.
Prosopopeicamente, a Catacrese enrubesceu ao agradecer:
– Valeu, Ana. Eu também acho exagerada toda a puxação de saco em cima dessa figurinha.
Anáfora chegou perto da Catacrese. Tanto para falar mais intimamente, como para deixar espaço para o grafite do cronista que corria pela mesma linha em que as duas se equilibravam.
– É lobby… A Metáfora é marqueteira desde o tempo em que o Shakespeare escrevia quadrinhas. Mas queria ver texto sincopado sem você.
– Deixa pra lá, suavizou Catacrese. Dá pra enganar muita gente por muito tempo, mas não dá pra enganar todo mundo o tempo todo. Um dia me reconhecem.
– Seria justo! – asseverou a outra. Não tem linguista aí que te chama de Metáfora Obrigatória?
– Ô se tem, a maioria se refere a mim desta maneira, concordou a figura de linguagem. É porque estou tão no dia a dia das pessoas que já me incorporei ao idioma. Tipo “braço da cadeira”, sabe? Todo mundo fala no automático.
– Pé da mesa, dente de alho, cabeça do prego, asa da xícara. Quem é que nunca usou você? Catacrese é lenda, amiga! – animou-se a Anáfora.
Mas como elogiar e coçar basta começar, a Catacrese logo devolveu o aplauso:
– Sem confetes, mas você também é demais. O que seria do texto poético sem a tua repetição de palavras?
– Pô, assim fico sem graça, Cata.
– Deixa de ser boba! Sem Anáfora não existiria, por exemplo, essa beleza do Luís de Camões…
A Catacrese levou a mão ao peito e começou a recitar com emotividade:
– Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer, é um não querer mais que bem querer.
Naquele momento passaram na linha de baixo do texto Anacoluto e Polissíndeto. Catacrese não se conteve e perguntou de um jeito malicioso:
– E esses dois aí, hein?
Anáfora foi maldosa:
– Ih, nem me fala. O Anacoluto, você sabe, é praticamente linguagem falada, rodou na norma culta. E o Polissíndeto, tadinho, vive me plagiando. Só que não tô nem aí, tem Gramática por aí que chama Polissíndeto de Anáfora.
– Fracassados… – concordou a Catacrese.
Nesse instante, o cronista pegou a borracha e, num impulso, apagou a composição inteira.
MORAL: ser uma figura de linguagem não garante que você seja uma figura importante.