No dia 29 de maio de 2013, com a presença da maioria dos 40 profissionais e empresários que integram a Academia Brasileira de Marketing, procedeu-se a escolha do Cidadão Sustentabilidade 2013, do Prêmio Marketing Best Sustentabilidade. Depois da análise e discussão sobre duas dezenas de nomes, a escolha recaiu por maioria absoluta no presidente Fernando Henrique Cardoso. O texto oficial da escolha diz: “Por aclamação, e tendo com lastro o trabalho histórico, emblemático e divisor de águas realizado por FHC e sua equipe durante seus dois mandatos como Presidente da República, que garantiu, pela primeira vez e em muitas décadas, a sustentabilidade necessária para que o Brasil pudesse recuperar seus valores básicos e essenciais, muito especialmente na economia, com total merecimento e justiça, o nome de Fernando Henrique Cardoso é escolhido e aclamado por todos os acadêmicos como Cidadão Sustentabilidade 2013”.
No último mês de outubro, no momento da comunicação oficial da escolha, Armando Ferrentini e Francisco Alberto Madia de Souza, pela Academia, foram recebidos pelo ex-presidente FHC e pelo Professor George Legmann nas dependências do Instituto FHC, em São Paulo. E atendendo ao pedido da Academia Brasileira de Marketing, o presidente concedeu a seguinte entrevista a Francisco Alberto Madia de Souza, que o propmark publica, a seguir, na íntegra.
Madia – Presidente, antes de tudo, e em nome de todos os profissionais de marketing do país, parabéns e muito obrigado. O marketing não floresce e muito menos viceja em economia instável e com inflação galopante. E assim, e de verdade, as pré-condições para a prática de um marketing de qualidade no Brasil se revelaram a partir do Plano Real e da estabilidade da moeda e da economia. Infelizmente, hoje, muitos sinais colocam em risco essa estabilidade, e uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira. O senhor está preocupado?
FHC – Estou preocupado sim. Por vários motivos, a começar pela flexibilização da lei de responsabilidade fiscal. Ela está sendo quebrada pouco a pouco. A recente mudança das regras sobre as dívidas dos Estados e municípios para com a União é um sinal disso. Não só foi quebrado um princípio – o de que os contratos são para valer – como na prática o que se vai obter são novas dívidas, pois haverá mais folga para que os entes públicos beneficiados contraiam novas dívidas. Mas não é só isso. O déficit externo aumentou muito, chegando a 3,7% do PIB, ultrapassando o limite aceitável de 3%. E a tendência dos gastos, tanto no orçamento da União como nas contas externas, vai em expansão, produzindo déficits crescentes. É questão de tempo e a confiança que o Brasil duramente conquistou nos mercados mundiais despencará, assim como as pressões inflacionárias internas aumentarão.
Madia – Peter Drucker, patrono da Academia Brasileira de Marketing, ao construir os fundamentos do marketing em seu livro de 1954, “Prática de Administração de Empresas”, afirmou que “o desempenho econômico é a primeira responsabilidade social de uma empresa. Uma empresa que não apresente um lucro depois de um determinado tempo é socialmente irresponsável, desperdiça recursos da sociedade. O desempenho econômico é a base: sem ele, a empresa não pode cumprir nenhuma outra responsabilidade; nem ser uma boa empregadora, nem ser uma boa cidadã, nem mesmo ser uma boa vizinha”. Quase 60 anos depois, o senhor faria algum reparo a essa afirmação ou continua válida integralmente?
FHC – São conselhos salutares. Enquanto prevalecerem as economias de mercado, capitalistas, não há duvidas de que o motor das empresas é o lucro.
Madia – Enquanto seu amigo Manuel Castells fazia uma palestra no Instituto Fernando Henrique Cardoso, as primeiras “Redes de Indignação e Esperança” do Brasil invadiam a Avenida Paulista em São Paulo, e outras ruas e avenidas pelo Brasil. Em artigo sobre o assunto o senhor escreveu que “esses protestos têm em comum dispensar líderes, manifestar-se pela ocupação de um espaço público, enfatizar a unidade do movimento e dos atores…” O senhor acredita que a democracia indireta, tal como a conhecemos, chegou ao fim? E se sim, que papel caberia aos políticos daqui para frente?
FHC – Eu não creio que haja mecanismo melhor para legitimar as decisões políticas do que a “democracia representativa”, como se apregoa desde Montesquieu. Não creio, por consequência, que os movimentos sociais encontrem respostas para suas reivindicações em uma Ágora ateniense. Ele não seria capaz de responder às demandas de participação popular e, ao mesmo tempo, de implementar políticas. Atenas envolvia nas decisões centenas ou poucos milhares de cidadãos. Entre nós, na “Ágora virtual”, são milhões de pessoas que estão conectadas pela internet. Torna-se muito mais difícil saltar instituições complexas para decidir e levar adiante o que se aufere da pressão popular. Porém, para preservar o sistema representativo e garantir a legitimidade das decisões teremos de ampliar a participação das pessoas no processo deliberativo. Só uma fusão entre o ímpeto das pessoas de opinar e as regras democráticas de votar darão conta do recado.
Madia – No início dos anos 1970, o consumidor brasileiro não tinha a possibilidade de escolhas. As marcas e modelos de automóvel eram dois ou três, iogurte só o Danone branquinho, duas ou três marcas de televisores, os shopping centers e o autosserviço nascendo, a televisão ocupando espaço. 40 anos depois, o consumidor brasileiro pode escolher, hoje, entre 842 modelos e alternativas de automóveis, iogurtes de todas as cores, frutas, e derivativos. Shopping e supermercados lotados e se multiplicando. E o consumidor cada vez mais disputado, ganhando a consciência de sua importância, e, como se diz hoje, se empoderando. E agora, e depois de todo esse aprendizado, começa a questionar seus direitos enquanto cidadão. Finalmente chegou a hora do acerto de contas dos cidadãos com seu principal e compulsório prestador de serviços, muitas vezes não prestados, o Estado? O senhor acredita que o consumidor permanecerá estático e conformado com um único fornecedor que praticamente lhe toma todos os meses quase 40% do que ganha e presta serviços da pior qualidade?
FHC – Dificilmente, um só provedor de bens sociais (saúde, educação, segurança etc.) ou de bens materiais (infraestrutura, produção direta de mercadorias) dará conta das demandas dos cidadãos “empoderados”. Na medida em que estes demandam maior qualidade (padrão Fifa, como diziam nos protestos de junho, quer dizer, padrão global) haverá também maior pressão para que o Estado contenha seus desperdícios e para que a qualidade da oferta melhore. Os contribuintes já sentem no bolso o custo de um Estado que incha e não aprimora os serviços que presta.
Madia – O senhor se arrepende hoje de ter aceitado e concordado com a reeleição? Talvez não fosse melhor um mandato maior e único? Nos últimos anos o que temos testemunhado é que os eleitos a cargos executivos trabalham dois anos e passam os dois anos seguintes em campanha para se reeleger, ou eleger uma pessoa de sua confiança.
FHC – Eu continuo favorável à reeleição para assegurar a continuidade administrativa. Só para dar um exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal e o tripé “metas de inflação/câmbio flutuante/superávit fiscal” foram definidos em meu segundo mandato. Não tivesse eu concorrido à reeleição e fosse Lula candidato contra terceiros teria maior chance de vitória e naquela época tanto ele quanto o PT eram contrários àqueles pilares da estabilidade. Na legislação sobre a reeleição fomos lenientes e nisso erramos ao não definir regras para coibir o uso da máquina pública. Basta ver o que está ocorrendo agora: 18 meses antes das eleições a Presidente atua como candidata, usando livremente a mídia que difunde as ações de governo, sem que haja a contrapartida da voz ou da imagem ou do texto do “outro lado”, das oposições.
Madia – Ortega y Gasset dizia: “eu sou eu mais as minhas circunstâncias”. É inegável a importância das circunstâncias em nossas vidas. Em seu entendimento, as atuais circunstâncias são mais que propícias para o prevalecimento do verdadeiramente novo nas próximas eleições, como aparenta ser a chapa Campos e Marina? Ou Aécio pode significar esse novo?
FHC – O “novo” não são apenas pessoas, mas ideias e práticas. Marina, a quem respeito, já foi eleita senadora, foi ministra e candidata à Presidência. Politicamente não é figura nova, como tampouco são Aécio e Eduardo Campos. É preciso ver qual será a mensagem deles e, sobretudo, a capacidade de cada candidato de transformar em prática o que propõem. Isso dependerá da base de apoio de cada candidato e de sua capacidade de liderança. O sonho é indispensável, mas a eficiência administrativa também, para evitar que o sonho termine por provocar pesadelos nos eleitores.
Madia – De tempos em tempos, e voltando a Gasset, as circunstâncias oferecem oportunidades únicas a países. Oportunidades de recuperar tempos perdidos, atalhar e dar saltos. O ambiente digital, neste momento, é essa circunstância e oportunidade, magnificamente aproveitada pela Coreia do Sul, por exemplo. Temos defendido, na Academia Brasileira de Marketing, a inclusão digital imediata de todos os brasileiros como prioridade zero para nosso país. Como no curto prazo não conseguiremos resolver os desafios da educação, saúde, saneamento básico, dentre outros, ao menos poderíamos garantir a todos os cidadãos brasileiros acessibilidade. Garantir-lhes o direito de não permanecer esperando e correr atrás. Fornecer-lhes a vara já que somos incapazes de garantir o peixe. Qual a sua opinião sobre o assunto?
FHC – Estou de acordo. O mundo do futuro será o da internet e o da criatividade. Sem acesso às redes e sem saber usá-las as pessoas ficarão ainda mais excluídas.
Madia – Muito embora a maioria das pessoas seja contrária à pena de morte, todos já nascemos condenados. Nosso patrono Peter Drucker disse que sua vida mudou quando um amigo seu japonês lhe perguntou que legado pretendia deixar. O senhor já pensou sobre o assunto?
FHC – Pensei, naturalmente. No meu caso os valores da democracia, do respeito à pluralidade de visões, sentimentos e formas de ação, primam sobre os demais. E não pode haver democracia de verdade sem inclusão social. A despeito de que em meu legado pesará sempre o Plano Real e a estabilidade econômica que ele propiciou, me interessei mais pelo fortalecimento das instituições e pelos programas sociais. Com a propaganda contínua dos governos petistas há um esforço para obscurecer o que meu governo fez na área social. Não obstante, basta ver a análise publicada pelo jornal O Globo, usando dados da PNAD, sobre os 20 últimos anos, para reconhecer que as novas políticas sociais começaram na década de 90 e que seu ímpeto foi maior na primeira do que na segunda década analisada. Isso ocorreu tanto nas bolsas (programas de transferência direta de renda) como na generalização do acesso ao ensino fundamental, sem falar na queda da mortalidade infantil ou no início de redução das desigualdades de renda medidas pelo Gini. Acho importante registrar o esforço feito para o Brasil mudar de patamar no conjunto das nações, o que vem sendo conseguido ao longo dos anos. Digo isso não só no sentido de se tornar um país próspero, mais rico, mas uma nação capaz de oferecer graus mais elevados de bem-estar. Tomara que tudo isso seja acompanhado da construção de uma sociedade decente, com um governo mais transparente e não conivente com práticas corruptas.