Garoto esperto: 25 anos de praia
Em 1989, num pequeno B&B londrino, a caminho de Cannes, vendo o canal comercial normal da BBC, tive meu primeiro alumbramento relacionado ao então Festival de Filmes Publicitários de Cannes: o comercial “Launch”, da DDB de Londres para o novo VW Passat, dirigido por David Garfath, produzido pela The Paul Weiland Film Company.
Nunca tinha visto nada igual numa TV aberta, normal, geral, a TV de todas as noites dos ingleses, assim como a gente aqui via os comerciais do Mappin e da Caderneta de Poupança Haspa.
Fiquei imaginando que, se inscrito, aquele comercial certamente ganharia Leão (foi o Grand Prix do ano), mas logo me dei conta, na mesma TV do hotel, que aquela peça não era nada diferente do que a média que estava sendo veiculada normalmente em horário nobre londrino. Me apaixonei pela publicidade inglesa antes de chegar em Cannes e ver, ao vivo, o “estrago” que faziam.
Na verdade, os chamados anglo-saxões (americanos e ingleses) ganhavam tudo em Cannes. Talento, grana e experiência ajudavam muito nisso, mas também o fato de que os júris eram massacrantemente formados por criativos exatamente desses países.
Ao contrário dos americanos e continentais, os ingleses valorizavam Cannes como uma vilegiatura obrigatória em que o mundo da publicidade (o “seu” mundo) era reconhecido e aclamado. Blasés, jamais eram vistos grupos de ingleses batendo pernas na Croisette ou disputando mesas nas festas de gala. Eles simplesmente não iam. Ficavam hospedados em Saint Paul de Vence ou Cap d’Antibes, faziam seus passeios por ali mesmo e no sábado desciam todos para a cerimônia de gala, onde recolhiam tantos Leões quanto podiam carregar. E voltavam aos seus hotéis e restaurantes exclusivos, onde davam entrevistas também exclusivas para a revista Campaign.
Os americanos, nem tão blasés, gostavam e ainda gostam de se esparramar pelo bar da piscina do Carlton, mas também frequentavam as exibições dos longlists e, principalmente, dos shortlists, onde transformavam os auditórios do Palais em espécie de arquibancada, com vaias e aplausos generalizados. Vaias tivemos muitas, sonoras, ensurdecedoras, constrangedoras, e nenhuma foi maior que a dirigida ao então presidente do júri, Frank Lowe, em 1995, quando decidiu não conceder o Grand Prix. O Palais veio abaixo.
Conto tudo isso porque em 89 e até meados da década de 90 o Festival de Cannes era realmente um festival de filmes dominado pelos americanos e ingleses que, apoiados por marcas como Kodak, Coca-Cola, Pepsi, FedEx, Miller, Heineken, Hallmark, Hamlet, Levi’s, as fábricas de automóvel e tantas grandes marcas, que eram atendidas pelas poderosas agências americanas, com verbas para contratar gente como Pitka e Paul Weiland.
Meu segundo alumbramento foi no mesmo ano de 89, ao chegar na Cote d’Azur e, especificamente, em Cannes. Até então, minhas únicas viagens ao exterior foram aquelas típicas de Nova York, além de um tour pela Europa básico, onde, nos dois casos, a dureza do orçamento e o cruzeiro/cruzado (seja qual fosse nossa moeda) não valia nada, não nos deixava aproveitar nada de bom no exterior.
Pois eu e o Maninho (meu primo, fundador da Cia. de Cinema, por longos anos, fomos juntos a Cannes, Mano&Maninho) chegamos à Europa via Turin, onde alugamos um Alfa Romeo e descemos para a Riviera francesa. Sair da A8, descer a Boulevard Carnot num daqueles dias de sol deslumbrante e literalmente desembocar no coração de Cannes, com aquelas lojas todas, as ruazinhas preservadas e com toda a fiação enterrada, os bares e bistrôs onde pessoas elegantes e felizes tomavam tranquilamente seus pastis ou sua flûte, mostrou-me um mundo totalmente novo.
A partir daí, Cannes tornou-se meu spa de informação e atualização profissional, seja pelos conteúdos apreendidos, seja pelo network único que existe durante toda a semana.
Desde esse primeiro ano, tive a sorte de fazer parte da equipe do Armando Ferrentini, que me concedia o privilégio de escrever minhas percepções do festival, que eram manuscritas, transferidas por fax para o Brasil, minha secretária datilografava e enviava de novo por fax para Cannes, onde eram editadas. Acho que pelo Maluf, não tenho certeza. Armando já era um veterano de Cannes e nos levou para jantar num restaurante chamado La Moule, que servia generosas porções da própria e, providencialmente, tinha toda a brigada formada por portugueses, um bálsamo para nossas limitações no francês.
No ano seguinte, eu escrevi uma dica para a revista Playboy, editada pelo Nirlando Beirão, e como não me lembrasse do nome da rua Saint Antoine (onde ficava o La Moule), descrevi-a como uma grande ladeira no Suquet, uma espécie de Pelourinho da Côte d’Azur, aliás, “Pelorin”. Parece que o nome pegou e até hoje tem gente que jura que a rua se chama assim.
Além do Armando Ferrentini, tive a sorte de ser conduzido e aprendido com grandes mestres da arte de curtir e entender Cannes, não importa se estamos falando do festival, seriamente, ou do fantástico entorno de entretenimento que o acompanha todos os dias, mas, principalmente, de noite.
O pessoal do propmark de então, Maluf, Marcio Erlich, Adonis Alonso, todos já fotografados pelo Ale; Rafael Sampaio, que já editava seu valioso guia, além dos grandes gurus e feras, que em Cannes se tornavam acessíveis e companheiros de mesa. Me fascinavam três deles: Sergio Graciotti, José Fontoura e Enzo Barone. Eu ficava de longe, ouvindo as histórias, aprendendo a discernir o bom do muito bom, mas também atento às malandragens do cassino, de quem tá pegando quem e onde ir.
Mais longe ainda, Washington Olivetto, um verdadeiro D. Quixote de Cannes, que acreditou que o Brasil (e ele) não deviam nada aos “anglos-saxões” e junto com João Daniel começaram a ganhar inconvenientes Leões. Washington, além de tudo, é um grande conhecedor do bom e do melhor da Côte. De sorvete de fruit de la passion a um drink de fim de tarde no Hotel Du Cap, ele sabe tudo e não escondia, dividia. Do que pude pagar, experimentei.
No segmento do bem viver, registro também as valiosíssimas dicas e, por várias vezes, companhias agradabilíssimas dos cariocas Mauro Mattos e Armando Strozemberg.
Enquanto Cannes foi um festival de filmes publicitários, era fácil, ainda que não previsível. Todo ano poderíamos ser surpreendidos por um fantasma espanhol (“Nuns”), por uma excentricidade francesa (“La Lionne”) ou por uma maluquice japonesa (Nissin). Fácil, porque você pegava o programa e sabia o que ia ver, categoria por categoria, todos os anos, havia coisas extraordinárias vinda dos mesmos países, geralmente dos mesmos anunciantes e agências. No final dos anos 90, escrevi um artigo cujo título era “Os clássicos de Cannes”. Mesmo assim, naquele mundo pré-internet, aquele era o momento de conferir quem estava fazendo o que e o que fazer nos próximos meses. Quantas e quantas tendências criativas e de produção não foram primeiro apresentadas no Palais? Lembro que no início da década de 90, quando o Olodum era desconhecido dos paulistas, um diretor australiano usou a batida do bloco como trilha sonora. E que no mesmo ano, inúmeras outras produções brasileiras, também.
Essa capacidade de ser um farol, um fortíssimo indicador do que será o nosso negócio nos anos futuros, é o que realmente mais me atrai em Cannes.
Tudo que acontecerá este ano na indústria da Comunicação já estava previsto há três, cinco anos, assim como o que acontecerá nos próximos três, cinco anos, também será previsto este ano. Este ano, a ESPM radicalizou esta proposta: no seu workshop (que apresentará na sexta-feira, dia 21), propondo o tema: How to sell my stuff in 2033?, que pretende ser uma “Time Capsule” a ser aberta pelos delegados do 80º Cannes Lions, para daqui a vinte anos, com nossas dicas e sugestões para o futuro.
A partir de 1992, o festival começou a migrar para fora da plataforma filme/comercial de TV e deu visibilidade a outras formas das marcas se comunicarem, começando pela mais básica delas, a mídia impressa, seja em anúncios seja em cartazes e outdoors. Já não era mais o Festival de Filmes Publicitários e sim o Festival Internacional da Propaganda, a que depois se acrescentou a marca distintiva do novo grupo que assumiu o controle do evento, Cannes Lions.
Mais alguns anos e Cannes reconhece o que então era chamado de “nova mídia” e, em 1995, incluiu a categoria “Cyber” para premiar peças publicitárias veiculadas naquela nova e desconhecida plataforma, que dava seus primeiros passos para se tornar o que é hoje. Daí em diante, e principalmente na década passada, o Festival se consolidou como o maior evento do meio, da indústria, abrangência que foi sendo ampliada dramaticamente, seja pelo crescente número de categorias que incorporou (hoje são 15), seja pela universalização de sua audiência geográfica (mais de 71 países representados), seja pela participação de todas as categorias profissionais agora envolvidas no negócio, de desenvolvedores de tecnologia a clientes, estes jogando um papel cada vez mais significativo.
Assumiu-se então como o Festival Internacional de Criatividade, esteja onde estiver, em qualquer plataforma, idealizada e produzida por quem for.
Os conceitos que vemos hoje consagrados e que, um a um, tiveram suas características desenhadas e propostas nos auditórios do Palais des Festivals foram construídos ao longo dessas décadas, fruto de uma incrível vitalidade criativa da indústria da propaganda (depois, comunicação) e da torrente de recursos, talentos e financeiros, com que este setor sempre contou.
Criatividade; entretenimento; negócios; digital; integração dos meios; conteúdo; moeda social; tecnologia e engajamento/responsabilidade social são os principais conceitos e drivers lançados, aplicados e reconhecidos pela comunidade profissional presente em Cannes ao longo das décadas.
Finalmente, não poderia deixar de me referir ao programa Young Lions (antes Young Creatives) que organizamos em conjunto com a Editora Referência: em 1994, notei um grupo de holandeses fazendo a maior farra nos jardins da Croisette. Perguntei aos organizadores e eles me explicaram que os jovens holandeses alugaram um ônibus e simplesmente foram para Cannes para assistir ao festival, claro que com pouquíssimos recursos. A organização do festival não só os acolheu como viabilizou sua inscrição e estadia na cidade, criando a categoria Young Creatives.
De volta ao Brasil, procurei Armando Ferrentini que se engajou imediatamente ao programa e já no ano seguinte enviávamos os 13 primeiros youngs, com o apoio de agências, produtoras, veículos e anunciantes que acreditaram e ainda acreditam no programa.
Este ano, 19 anos após, estamos levando mais 24 jovens profissionais, totalizando 344 youngs que superaram todas as melhores expectativas: o Brasil lidera o ranking da Young Lions Competition desde que foi criado; nossos youngs assumiram papéis de liderança e comando nas melhores e principais agências de comunicação do país; na última estatística, de cada 8 Leões que o Brasil ganhou, em pelo menos seis deles havia Young Lions nas fichas técnicas, tornamo-nos referência mundial do programa e o mais importante: a cada ano, o mercado aguarda e reconhece a delegação do Young Lions como um padrão de excelência, do melhor da safra.
O privilégio que tive e tenho de conhecer, conviver e acompanhar suas carreiras é uma das maiores alegrias que um profissional (que também se considera um educador) pode ter.
Sem contar as dezenas de histórias, dramas, festas, perrengues e verdadeiras acrobacias que pude presenciar nesses anos todos, imaginando como seriam as que não vi.
Mas isso não cabe aqui. Aguardem Young Lions – 20 years later.
*Vice-presidente corporativo da ESPM e coordenador do Young Lions Brazil Program