Só rindo, mesmo
Eu vou a Cannes há tempo suficiente pra colecionar todo o tipo de histórias. Ligadas ao trabalho, aos jurados, aos meetings das agências para as quais trabalhei, etc. Mas nada, nada se compara ao entorno. Me refiro às histórias paralelas, aquelas que acontecem antes, durante e depois, e que não dizem necessariamente respeito ao festival, mas que só acontecem ou aconteceram por causa dele.
São as ocorrências inesperadas, os pequenos deslizes, os enganos provocados pela falta de intimidade com a língua estrangeira, as confusões fonéticas, enfim, aquilo que o Sérgio Graciotti, meu primeiro grande mestre, chamava de “nhoco”.
Eu e a Lory (Solomonescu) temos uma lista recheada de “nhocos” que fomos guardando ao longo do tempo e que acabaram inspirando campanhas divertidíssimas que criei com outros colegas para o Alumni e o CNA. Tudo isso me faz concluir que Cannes é muito, muito mais do que um par de Leões. Vamos lá.
Preparativos para Cannes. Ele, grande profissional e queridíssimo amigo, preenche sua inscrição no Brasil. Fica feliz que tudo dá certo. Vai se hospedar no Martinez. Ao descer do táxi, já no check-in do hotel, é recebido com todas as mesuras. Monsieur Fulanô daqui, Mademoiselle Fulaná de lá, bienvenue, etc. Ele está encantado.
O gerente faz questão de acompanhá-los pessoalmente até o quarto. A porta se abre e um vento embaraça os cabelos da patroa. É o vento que entra pelas imensas janelas abertas que ocupam toda a extensão da sala de estar, oferecendo visão panorâmica do Mediterrâneo. Na mesa de jantar, um Veuve Clicquot de boas vindas, duas taças de cristal Riedel, bombons Callebaut, framboises e um bilhetinho carinhoso do hotel.
Uma porta de correr lateral dá acesso ao escritório, que leva à sala íntima, que leva à suíte do casal, um quartão imenso que alojaria fácil duas famílias. O banheiro é outra aberração. Praticamente as termas de Caracala com uma jacuzzi redonda enorme no centro.
E assim segue. Nos corredores, garçons, camareiras, todos os funcionários do hotel os cumprimentam pelo nome. Aonde eles vão, há sempre um francês de terno e óculos escuros atrás. Gentileza do hotel, que disponibilizou um segurança para o casal.
Claro, ele está intrigado. Aquela mansão não pode custar só o que ele entendeu que iria custar. Algo está errado. Passa uma noite mal dormida, remoendo pesadelos, até que, na manhã seguinte, resolve chamar o amigo que fala francês fluentemente pra ajudar. E descobre o óbvio. Preencheu errado o formulário. Não sabe como. Talvez tenha confundido o cargo de vice-presidente com o tipo de suíte, presidencial, arriscam alguns engraçadinhos de plantão. O fato é que o gerente não quer cancelar a reserva. Diz que o Martinez eticamente recusou a solicitação de um sheik árabe porque o formulário de monsieur chegou primeiro. A discussão esquenta, até que ele, finalmente, consegue se safar do Martinez. Não sem antes pagar, por uma noite, praticamente o que ele pretendia gastar nos sete dias de permanência em Cannes.
Outra.
Eles vão pra Cannes por Madri. Querem rever alguns amigos na Espanha primeiro. Estão cansados. No aeroporto de Barajas, dezenas de cartazes anunciam em letras garrafais: EL CORTE INGLÉS. TAX FREE.
Um deles comenta: “Pô, a gente não pode deixar de passar na Corte Inglesa. Você viu que o táxi é de graça?”.
Continuando.
Ele sai de Cannes em direção a Roma. Quer passear pela Piazza de Espanha, rever o Coliseu, fazer um tourzinho básico. Pega um táxi e engata: “Per favore, Piazza Navona”.O motorista (sempre um romano mal-humorado) vira pra ele e diz: “Signore, è aperto”, referindo-se à porta que ele não havia fechado direito. Ele emenda: “Si, si, é pertinho, si…”.
Mais uma.
Tudo pode acontecer quando se vai a Cannes. Até quebrar o dente. Bem o da frente. E o dente se parte em Paris, exatamente naqueles diazinhos de relax entre o final do festival e a volta ao trabalho no Brasil.
Ele não pode sorrir. O que não seria nada na França se ele pudesse falar. Está desesperado. Até que o destino, este sim, lhe sorri e promove um encontro inesperado no Deux Magots com um dentista prevenido, o meu marido. O dentista prevenido nunca viaja sem uma pequena valise que, além de remédios, carrega itens de primeiros socorros dentários. Ali, a solução salvadora. Vão ao hotel e o dente é colado. Tudo em português do Brasil.
Mais outra.
Os três saem de Cannes rumo a Alemanha. Querem pegar um trem que atravessa a Floresta Negra. Estão curiosíssimos, dizem que a paisagem é belíssima e o trem vai parando em várias cidades. Vão preparados pra fotografar e anotar tudo. A viagem começa.
Primeira parada do trem pra troca de passageiros. Eles se debruçam na janela.
– Que legal, que cidade será essa?
– Humm… olha lá… Ausgang, anota aí.
O trem parte novamente. E para em outra cidadezinha.
– Que visual, cara… fotografa a entrada com a placa…
– Que placa?
– Da cidade…
– Onde?
– Ali, porra… Gostei do logo: Ausgang.
– Ausgang???
– Sei lá, deve ser um subdistrito…
E assim eles seguem, anotando e fotografando o nome de pelo menos mais umas três Ausgang. Até descobrir que Ausgang é “saída” em alemão.
Finalmente.
Essa história é minha. Claro, não dava pra ficar falando só dos outros, que eu também não sou de ferro. Primeira ida ao festival. Eu e meu marido, o único dentista que, segundo o Rafael Sampaio, vai pra Cannes todo o ano. Encontramos mais dois publicitários que também estão acompanhados. Química total. Formamos um grupinho que vai junto pra todos os lugares.
A amizade atravessa o Atlântico e se prolonga em jantares, cada quinzena na casa de um dos casais. Oportunidade pra exercitar habilidades culinárias, tomar bons vinhos, etc. Chega a nossa vez de recebê-los.
Tudo preparado, saio correndo da agência em tempo de comprar um sorvete choc chip pra acompanhar o que seria o ponto alto do jantar, as frutas flambadas que o Zé Luiz costumava fazer na mesa, na frente dos convidados. O jantar corre bem.
Chega o grande momento. As frutas já estão prontas. Vou à geladeira e pego o sorvete pra acrescentar às taças e servir. Na medida em que vou servindo, os comentários elogiosos começam a escassear, dando lugar a um silêncio constrangedor. Os sorrisos de satisfação vão ficando amarelos. Até que, afinal, alguém arrisca, delicadamente:
– Humm… que sobremesa exótica… do que é esse sorvete? Olha, tem umas coisinhas vermelhas boiando… é morango?? Dou uma olhada na taça que ela exibe e um frio percorre minha espinha.
Não, não é morango. É… Tomate!!!! Tomate, pedacinhos de carne seca e feijão, que começam a derreter miseravelmente e a tomar forma em cima da banana e da manga!
Feijoada!
Sim, feijoada que a minha assistente do lar congelou numa embalagem de La Basque, igualzinha a de chocolate choc chip que eu tinha comprado…
Faz parte.
*Adriana Cury é sócia-diretora da Aidia