Choques culturais
Minha carreira profissional tem dois marcos importantes. O primeiro deles foi quando visitei a DDB em Nova York no ano de 1958, no momento que a campanha “Think small”, para a Volkswagen, tinha sido concebida. Na reunião com Bill fiz muitas perguntas e ouvi tudo muito atentamente. Ensinamentos que trouxe para a Almap no início dos anos 1960, quando fui contratado para dirigir o departamento de criação a convite de José de Alcântara Machado e Otto Scherb. Ajudei a Almap a ganhar uma concorrência feita pela Volkswagen e, claro, coloquei em prática tudo que vi na DDB, mas com tempero da “erva brasilis”.
O outro choque cultural que tive na minha carreira foi quando fui convidado pelos representantes do Festival Internacional do Filme Publicitário, hoje Cannes Lions, para integrar o corpo de jurados em 1973. Fui o primeiro brasileiro a ser distinguido como membro do júri nesse evento que comecei a frequentar na década de 60, ora em Veneza, ora em Cannes. Participar desses júris de Cannes não foi essencial para mim apenas por estar vendo com olhar crítico mais de cinco mil e quinhentos filmes publicitários de todas as partes do mundo. Nas conversas com os outros 19 colegas de júri no bar do hotel Carlton e nas madrugadas à beira da piscina no hotel Martinez, chegávamos a especular que esses 20 profissionais de criação poderiam estar à frente de uma agência global de verdade. Cannes foi um autêntico MBA para a minha carreira. Ali aprendi o que nenhuma escola vai conseguir expor para seus alunos. Um mix de prática e teoria ao vivo com boas risadas, boa comida e boa bebida.
Tenho certeza absoluta de que o festival é uma espécie de divisor de águas. Quem vai a Cannes pela primeira vez volta outro. A visão sobre a publicidade muda e novos manejos da profissão ficam perceptíveis e muito mais ágeis. Esse enriquecimento é sintomático e quem ganha com isso é o mercado como um todo, dos anunciantes passando por fornecedores e agentes publicitários, principalmente os ligados à criação. Hoje, a identidade de Cannes não se limita à fronteira do cinema publicitário, mas à criatividade de todas as disciplinas de comunicação. A criatividade é siamesa da publicidade; indissociável.
Mas Cannes não é só esse palco que exacerba a criatividade mundial da publicidade desde o ano de 1953 quando foi criado pelos Rothschild, à época grandes exibidores de cinema, com viés mercadológico. Uma das coisas que sempre me incomodou foi a produção de peças fantasmas. É quase uma unanimidade entre os profissionais que a publicidade deve estar a serviço de propostas mercadológicas, comerciais. É uma contribuição bem-vinda especialmente quando dá resultado. Ponto. Por isso os anúncios e comerciais concebidos para algo sem a condição mercadológica recebem a alcunha de fantasmas. Nunca vi com bons olhos esse tipo de trabalho. Mas não posso negar que a maior parte dos publicitários com foco na criação tem na gaveta especulações sobre alguma coisa. É natural e latente de quem tem a veia criativa.
Mas será que os fantasmas devem ser encarados como espécie de alma penada da propaganda? Se ela é alma do negócio, deve ser um instrumento de vendas. Porém, o exercício criativo é bom. Cheguei a pensar, e acho que muitos também tiveram essa ideia, que festivais como o de Cannes deveriam criar uma área específica para julgar em muitas categorias as chamadas peças de autor, sem um cliente para aprová-la. Tenho certeza de que muitas campanhas que foram propositivas para marcas, produtos e serviços saíram de algum tipo de gaveta de criativos que as guardaram esperando o momento adequado para aquela ideia.
As aberrações existem. Gostaria de citar duas que traduzem bem a criatividade da Espanha, um país que hoje é destacado pela crise do desemprego e pelo bom futebol do Barcelona de Messi e cia. Mas, em um passado recente, os espanhóis levaram para casa Grand Prix com filmes cuja matriz criativa é de indubitável veia. A ausência de um cliente, porém, é que garante o inverossímil. O comercial que vou chamar de “Freira”, criado pela Casedeval Pedreño & SPR ganhou o GP do Festival de Cannes, mas é um notório fantasma que contagiou os jurados com sua criatividade no ano que competiu. A cola Talens usada pelas freiras para afixar o “pintinho” de um santinho de cimento simplesmente é uma marca que não existia e nunca existiu. O júri de Cannes caiu no conto da agência e não investigou a origem e concedeu o prêmio. O filme é muito bom, mas é apenas um exercício. Nesse caso, competir com trabalhos essencialmente mercadológicos é ato falho e desleal. Por essa razão, sempre defendi que fosse uma disputa específica com critérios que consagrassem o exercício criativo dos publicitários.
A campanha criada pelos espanhóis Toni Segarra (um dos nomes mais expressivos da publicidade mundial), Maribel Muñoz, Maria José e Juan Mariano Lapeña Mancebo, principalmente os filmes “Patinete” e “Maleta”, podem não ser fantasmas, mas de tão iconoclastas que são, fica muito difícil dissociá-los da pecha de fantasmas. Quem acreditaria que uma rede de televisão como a TVE da Espanha aprovaria uma campanha que alertava as famílias sobre o excesso de tempo dos filhos à frente de um monitor de televisão? A essência dos filmes era um cachorro que se sentia abandonado pelo jovem dono. Em “Maleta”, o cão que não conseguia atrair a atenção do garoto – cuja expressão é impagável e mostra como a direção e o tratamento de ator foi brilhante – se prepara para uma viagem. No caso de “Patinete”, o animal força a barra com os brinquedos que outrora eram usados pelo amigo que está tão absorto à telinha que não dá a menor bola para o cachorro. Muitos dizem que Segarra, que estava lançando a agência Contrapunto após um período de ‘no compete’, usou a estratégia para popularizar o negócio. Há dúvida sobre se é fantasma ou não, mas pouca gente deve ter visto esses filmes na grade da TVE. Creio que os horários não tinham audiência relevante e uma emissora competitiva não trabalharia contra seu próprio produto.
Cannes é assim: desperta paixões, permite um conhecimento extra da publicidade, recebe fantasmas e mentes brilhantes. De uns anos para cá, os organizadores passaram a ser menos complacentes com esse tipo de conteúdo. Caçam fantasmas exigindo autenticidade e planos de veiculação. Não querem macular sua marca que é associada à criatividade. Uma criatividade pragmática que está a serviço do marketing. O exercício deveria virar uma categoria. Não acham?
*sócio da SPGA