O festival de gravata

Eu pensei duas vezes antes de publicar essa foto. Nem consultei meus amigos e colegas de profissão. Primeiro porque, com certeza, eles não iriam deixar. E, segundo, porque acho que quem mais tem a perder sou eu mesmo, com um terno bege, duas vezes o meu tamanho, uns óculos horrorosos e um cabelinho Oscar Wilde.

Essa foto foi tirada em junho de 1995. Lá estavam, da esquerda para a direita, Fred Saldanha, eu, Rui Branquinho (com um garfo na mão), Jorge Barrote, Leandro Alvarez, Cassio Moron e Paulo Diehl. Se não me engano, esta era a festa de abertura do Festival. E lá fomos nós de gravata.

Acho que essa foto captura bem o espírito com o qual eu gostaria de encarar Cannes todos os anos: com seriedade. Era a minha primeira vez em Cannes. Não tinha nem quarto pra ficar. Fui de última hora e acabei dormindo no chão do quarto do Paulo, no Martinez. De dia, vestia camiseta da Young & Rubicam Lisboa. De noite, terno e gravata.

Estava absolutamente deslumbrado. A semana toda não tomei um raio de sol. Entrava no Palais com uma baguete de Jambon et Fromage e uma Orangina na sacola e ficava o dia inteiro assistindo a comerciais. Naquela época pré-YouTube, a sensação de ver em primeira mão todos aqueles filmes era indescritível. Parecia que você realmente tinha uma vantagem competitiva em relação a todo mundo que não estava lá.

Levei uma câmera Kodak e rolos e rolos de filme e tirei fotos de todos os finalistas e ganhadores de Press & Poster. Mandei revelar lá mesmo em alguma lojinha da Rua de Antibes. Anotei todos os conceitos, todos os slogans, todos os campaignlines. Muitos nem entendia direito, porque meu inglês era sofrível. Sabia o nome de todas as agências ganhadoras. E dos diretores de criação. E dos redatores e diretores de arte.

No último dia, no sábado, passei no Palais na hora do almoço para dar uma última olhada. Fiquei até eles começarem a tirar os anúncios das paredes. Perguntei a um funcionário o que eles iriam fazer com todos aqueles anúncios. Iriam jogar tudo fora. Selecionei a dedo várias campanhas de agências que eu admirava na época, como a Lowe Howard-Spink. Guardei essas campanhas durante muitos anos. Achava que o contato direto com aquelas impressões originais de alguma maneira me conectava diretamente àquele mundo criativo tão distante.

Na premiação do sábado à noite, cheguei cedo no Palais para não pegar fila. Devia ser umas 4 da tarde. Alguns japoneses já estavam lá, eles sempre são os primeiros a chegar. Eles e o Paco Conde. Fiquei horas em pé, de terno, suando sob um sol escaldante, esperando os portões abrirem. Nada importava, queria garantir um lugar perto do palco.

Cannes 1995 foi uma experiência nada glamorosa. Foi 100% nerd publicitário. Nerd mesmo, porque não existia geek.

Corta para os dias de hoje.

Chego em Cannes muito mais cínico. Já vi quase tudo online. O que não vi, posso ver depois com calma sem enfrentar fila. Participo de reuniões da Ogilvy, de reuniões da David, de coquetéis com clientes, de jantares para comemorar os Leões. Acabo quase não indo ao Palais.

Nada errado com tudo isso. Continuo adorando ir a Cannes. Mas tenho saudades daquela primeira vez.

Tenho saudades de ver tudo, de anotar tudo, de aprender com cada peça, de achar que nunca vou ser capaz de ter ideias tão criativas, de achar que é um mundo ao mesmo tempo inatingível e possível.

Cannes deveria ser encarado todos os anos como se fosse a primeira vez.

Nunca ninguém levou aquele festival tão a sério quanto aquele jovem com o terno emprestado do pai e gravata do Mickey.

*Vice-presidente nacional de criação da Ogilvy & Mather e fundador da David