O que é que Cannes tem?

1. Tem os prêmios. E as lógicas que ninguém fora de publicidade entende. Sempre lembro de um amigo redator que ligou para a mãe.

 

– Mãe, ganhei um Leão de prata!
– Parabéns! Traz pra a gente ver.
– Eles não entregam aqui, só no Brasil.
– Ué, mas você não foi aí só pra isso? Pede que eles dão.
– Não dão, mãe. Só se fosse de ouro.
– Mas que frescura. Então quando entregarem traz aqui.
– O troféu é da agência, mãe. Se eu quiser um, tenho que pagar… E é uma grana!
– Mas, filho, como assim eles pegam o seu trabalho de graça, usam, premiam e não te dão nem um troféu?
– Mãe, eles não pegaram de graça. A gente pagou caro para inscrever.
– Filho, não tô entendendo nada, mas parabéns. Eu acho.

2. Cannes tem todo mundo. E por isso todo mundo quer ir a qualquer custo. Como essa turma de uma famosa produtora.

– Os caras da produtora tão vindo aí pegar o Leão que ganharam. Comprei passagem mais cara, hotel mais caro, última hora é fogo, mas eles merecem.
– Legal, ganharam em quê?
– Cyber.
– Mas a entrega dos Leões de Cyber foi hoje.
– Como assim? Os caras pediram para eu pagar a passagem deles para virem pegar o bronze de Cyber.
– Mas bronze não sobe no palco, nem entregam aqui.
– Tá de sacanagem. Peraí, tô passando até mal, não me mata de susto.
– Juro.
– K@#$%!ho, que preju!!!

3. Cannes tem as festas, os bares. E seus excessos. Uma vez me lembro quando apareceram três jovens companheiros, vindo de uma festança e esbarraram numa amiga no bar do Martinez.

– Legal encontrar vocês, esse meu amigo aqui está querendo conhecer uns criativos do Brasil, ele fala português. Espera aí que vou pegar cerveja.

Acontece que o gringo tinha um sotaque esquisito, o que fez os três começarem a zoar muito o homem.

– Ô amigo, desculpa, você é de onde?
– É, esse português aí, é de que parte do mundo?
– Eu sou americano, aprendi na faculdade.
– Ih, já vi tudo, americano nada, tu é do Paraguai.
– Esse sotaque aí é meio moçambicano bêbado, meio de jamaicano doidão, hahaha.

Encheram o saco do cara uns 20 minutos, passaram do sotaque para o figurino dele, falaram do penteado, infernizaram. Volta a amiga com as cervejas. O gringo soltou uns impropérios em inglês e se retirou. Ela explicou:

– Seus imbecis, esse cara é recruiter na Wieden+Kennedy e estava procurando brasileiros para fazer uma campanha para a Copa do Mundo!

4. Cannes tem os caras que aproveitam para fazer propaganda enganosa. Um camarada, depois de gastar o salário inteiro numa garrafa de champagne, ia saindo de uma praia escorado por um amigo quando duas ou três louraças gringas com quem ele estava conversando abordaram a dupla.

– Você vai levar seu amigo? Que bom, ele não está em condições de pilotar o barco dele. Você também pilota?
– Barco? Esse cara aqui é o maior pé rapa… Ah, claro, piloto sim, pode deixar.

5. Cannes tem festa, tem boca-livre. E tem um amigo meu que quando vai fica só na aba para apreciar os pratos mais “requentados”:

– Vou pra um jantar agora, tudo por conta de uma produtora. Vai ter até “videiras”!
– Você quer dizer vieiras?
– Pobre é fogo, né? Quer comer um prato mais legal de graça e não sabe nem o nome…

6. Cannes tem rivalidade. Uma senhora, acompanhada do marido, veio perguntar para um brasileiro o que estava acontecendo no Palais.

– É um festival de publicidade.
– Mas é da Argentina?

Ela apontou para um enorme banner escrito Argentina, que tinha um pool de produtoras patrocinando o festival.

– Ah, isso? Não, não, deixa eu explicar: desse lado aqui, onde está escrito “Cannes Lions”, é o festival de publicidade. Lá, onde está escrito “Argentina”, é uma congresso de travestis e drag queens.
– Entendi, muito obrigado.
– De nada.

 

7. E Cannes, claro, tem toda a participação sempre bem-humorada e simpática dos franceses.

Teve uma vez que cheguei com pressa num café e pedi um sanduíche e um suco pra levar. A moça do balcão perguntou se eu queria que esquentasse o sanduba. Sim. Ela tira o dito cujo da vitrine e a fatia de baixo do pão cai (óbvio, com a manteiga virada para o chão). A mademoiselle se faz de rogada e, na minha frente, ameaça colocar o pãozolho de novo na composição. Interrompi a graciosa e disse algo como: “Aí não, né, mon chéri”, com um sorriso simpático nos lábios. O olhar da francesa me atravessou como se eu fosse a defesa do Brasil na final da Copa de 98. Ela joga a fatia cheia de cutão no lixo e leva minha refeição para a cozinha. Volta com o suco e um embrulho quentinho nas mãos. Abri meu farnel já perto do Palais. Uma fatia estava lá, o queijo e o presunto também, mas ela não colocou a outra fatia, esquentou o presunto direto na chapa.

Se fosse um filme, poderia assinar: Conheça Cannes, tem de tudo.

 

*diretor de criação da Ogilvy