Terra de contrastes

Meu primeiro ano em Cannes foi 1990. Apesar de bem começante na profissão, eu havia sido promovido a diretor de criação da DPZ Rio uns dois anos antes, graças à generosidade de gente como Stalimir Vieira, Juan Vicente, Roberto Duailibi, Fransesc Petit e José Zaragoza.

Como aquela seria a minha primeira vez e a ansiedade era enorme, fiz todos os arranjos com muito mais antecedência do que todo mundo, quase um ano antes, junto com o Marcos Frauches, RTV da agência. Resultado: veio o Plano Collor em 16 de março, o dinheiro de todo mundo foi confiscado, e aquela deve ter sido a menor delegação brasileira em Cannes nos 60 anos do festival.

Dividi com o Frauches um quarto em um pequeno e baratíssimo hotel atrás da Rue D’Antibes, uma daquelas ruas bem estreitas, típicas das cidades da costa azul e do interior da França ou Itália. Do outro lado da finíssima rua tinha um outro hotel que ficava tão perto, mas tão perto, que dava para contar um segredo para o hóspede do quarto em frente. Fui dormir, cansado de mais um dia de muitos longlists e muito Martinez, sem saber que a noite mais bizarra da (minha) história estava para começar, uma noite cheia de contrastes.

No meio da noite, tocou o telefone do quarto do hotel. Do outro lado da linha, uma moça simpática e feliz avisava que eu deveria estar às 10 da manhã no Palais para me identificar e receber instruções, pois a DPZ tinha ganhado um Leão de ouro e eu tinha que subir ao palco naquela noite para pegá-lo. Neste mesmo momento, um casal nórdico, com pinta e tamanho de vikings, começou a discutir no quarto do hotel em frente, do outro lado da rua, aquela realmente estreita. O Marcos acordou, sem entender nada daquela cena: eu no telefone e um ogro berrando com a mulher do outro lado da rua. Foi então que aconteceu o inesperado: o viking chegou até a janela do quarto e pulou. Caiu lá embaixo, estatelado, na calçada.

Isso mesmo. Por um lado, uma moça me dizia que nós tínhamos conquistado um Leão de ouro em Film e, por outro, um viking pulava com seus prováveis 200 quilos da janela do hotel em frente. E isso tudo de madrugada em Cannes. A moça me explicava, em inglês com sotaque francês, que o tardar da hora era justamente para não vazar a informação antes do dia da entrega dos Leões. E eu boquiaberto com a cena do sujeito esparramado e da mulher gritando na janela desesperada em holandês ou sei lá.

Em poucos minutos chegou uma ambulância, fez o atendimento ali mesmo no local e, com a ajuda de uns dois ou três funcionários do hotel, colocou-o na traseira do carro e o levaram embora, de sirene ligada. “Ele deve estar vivo”, pensei, porque queria ficar feliz pelo Leão de ouro, mas sem a culpa pela tragédia que acabava de acontecer a poucos metros de nossa janela.

Depois de um longo tempo estupefatos, conseguimos dormir um pouco. No dia seguinte, acordei sem ter a certeza de que tudo aquilo tinha acontecido de verdade, aquelas duas cenas opostas.

Saímos do hotel e eu fui até o Palais, morrendo de medo de pagar mico e de alguém dizer “tá maluco, sonhou?”. No caminho encontrei o Luis Antônio Ribeiro Pinto, então representante do festival no Brasil, junto com o Nizan, feliz da vida com o primeiro Leão da sua DM9 com o filme “Grávida”, também de ouro (foram os dois únicos Leões de ouro do Brasil naquele ano). Ambos me deram os parabéns, me ofereceram uma taça de champagne e eu então fui para o Palais feliz da vida e acreditando definitivamente no ouro.

Naquela noite, o filme “Índio”, da DPZ para a Rede Globo, uma ideia simples e brilhante do Petit e do Paulo Ghirotti, foi um dos mais aplaudidos e eu ainda tive o privilégio de frequentar o coquetel para os jurados e ganhadores de ouro nos bastidores do Palais, onde conheci muita gente boa do mundo todo. E quanto mais ia ficando incrível aquela primeira experiência em Cannes por um lado, mais me incomodava aquela cena trágica.

Já de Leão na mão, voltando para o hotel meio alcoolizados e totalmente felizes, passamos pela portaria do hotel do outro lado da rua para perguntar sobre o destino do suicida. O porteiro não sabia dizer se ele estava bem ou não, a mulher fez check-out naquela manhã e ficou o mistério até hoje. Então quando me perguntam qual a sensação de subir no palco do Palais e pegar um Leão de ouro eu respondo: depende, com ou sem contraste?

*sócio e diretor de criação da agência 11:21