Eu pedi gênios, não gêmeos

Sou gêmeo. Pronto, falei. Vivi a vida inteira tendo um cara idêntico a mim. E somos ambos publicitários. Claro que minha relação com o festival de Cannes foi bem influenciada por essa pequena coincidência.

 

Começamos a carreira juntos como diretores de arte em Curitiba, numa agência chamada Exclam. E quando digo juntos quero dizer juntos mesmo, como dupla. Quer dizer trinca, porque o esquema de trabalho da agência implantado pelo Renato Cavalher permitia que sempre tivéssemos um redator trabalhando com a gente. Entre eles o Marcos Zanatti e o Luiz Groff. É desse último a frase que dá título a este texto, um apelo ao diretor de criação:

– Eu pedi gênios! Gênios, não gêmeos!

Mas a química deve ter dado certo, porque foi ali que se iniciou nossa relação com Cannes. Juntamos um ano de trabalho para competir no Young Lions Paraná, que dava direito a uma passagem para o festival. Como tínhamos uma pasta única, achamos que seria muito estranho mandar duas pastas iguais para os jurados. A decisão foi fazer duas pastas diferentes, uma com as ideias que julgávamos mais criativas e outra com ideias bem-resolvidas de clientes maiores, para mostrar nossa senioridade como criativos, mesmo tendo pouco tempo de carreira na época.

O par ou ímpar deu a mim a pasta mais criativa, e com ela venci a competição, mas o nosso acordo em caso de vitória era de que os dois iriam de qualquer forma, dividindo as despesas da ida do outro.

Lá fomos nós ter a primeira experiência em Cannes, como dois caboclos do interior conhecendo a cidade grande. Não tínhamos ideia da dimensão do festival. Deslumbrados, logo no primeiro dia, descemos ao subsolo do Palais para ver a exposição das peças de Print. De imediato vimos um dos nossos trabalhos lá, e começamos a rodar o local para ver onde estavam os outros (eram quatro ao total). Depois de quase duas horas procurando, já estávamos irritados com a organização do evento: “É injusto se eles não expõem todos os inscritos”. Até que um criativo amigo nosso lá de Curitiba apareceu para nos congratular pelo shortlist. “Sério, já saiu o shortlist?? Onde você viu isso?” Obviamente não tínhamos a menor ideia de que a exposição já era o shortlist.

Também juntos ganhamos nosso primeiro Leão em 2000, um Leão de prata para o Ministério da Saúde. O anúncio simulava o efeito da mastectomia numa mulher simplesmente dobrando uma página e alertava sobre a importância do autoexame de câncer de mama. Nesse ano não estávamos lá, mas esse Leão mudou tudo em nossas carreiras: abriu as portas de São Paulo e fez com que pela primeira vez na vida deixássemos de trabalhar juntos. Com propostas da Almap e da DM9, novamente foi o par ou ímpar que decidiu por nós e o Renato foi para a primeira e eu para a segunda.

A partir daí, Cannes virou um lugar para conhecer melhores amigos que nunca tinha visto na vida. Sempre encontro desconhecidos que são muito amigos do Renato e o mesmo acontece com ele. Então caminho pelo Palais como se fosse um vereador, cumprimentando todo mundo, com medo de passar uma imagem de grosseiro para pessoas que conhecem meu irmão. Mesmo assim, todo ano tem alguma confusão, como um grupo de uruguaios que não se convenceu de que eu não era ele. Quanto mais eu explicava, menos acreditavam. Acho que até hoje ainda estão convencidos de que o Renato estava fazendo alguma brincadeira.

E, por falar em brincadeira, uma vez ele encontrou meu cliente da Coca-Cola em frente ao Palais e resolveu fingir que era eu, inventando um monte de barbaridades sobre mim. Só descobri no dia seguinte, em uma reunião com esse cliente no Carlton, ainda surpreso com o que supostamente eu teria lhe dito.

De tão iguais, acabamos os dois sendo jurados em Cannes, Renato em 2010 e eu em 2012. Só que pareceu que fomos membros do júri juntos nos dois anos. Todo mundo sabe que jurado brasileiro evita caminhar pelo Palais antes da escolha dos Leões porque acaba sendo bombardeado por perguntas de curiosos sobre os resultados. Só que quando você é só delegado e tem alguém idêntico a você no júri, passa a semana sendo abordado equivocadamente. Tanto que pensamos em fazer uma camiseta: “O jurado é o outro”. No fim teve mais um fato semelhante, ambos os nossos júris tiveram um Grand Prix brasileiro.

E enquanto São Paulo nos separava publicitariamente, Cannes resolveu nos unir, depois de muitos anos, mas numa área um pouco diferente: futebol de areia. Jogamos o torneio de Beach Soccer que acontece na praia ao lado do Palais. Provavelmente os adversários ficaram confusos sem saber como nos marcar, porque fomos campeões. E como era um torneio publicitário, a entrega de medalhas foi no Palais. Foi assim que subimos juntos pela primeira vez no palco de Cannes.

Mas o Renato provavelmente nem se lembra disso. Antes da final ele tomou um chute no rosto e perdeu a memória. E com tanta gente chamando ele de Roberto pela Croisette não duvido nada que ele tenha voltado a si achando que era eu. Espero que ele não encontre de novo aquele meu cliente.

 

*diretor-geral de criação da Ogilvy