Depois de cerca de 14 anos dedicada à comunicação, ao marketing e a projetos digitais, Viviane Sedola decidiu fundar a Dr. Cannabis, um marketplace digital focado em tornar o tratamento com cannabis medicinal legal mais acessível e transformar dados em conhecimento a partir de uma comunidade colaborativa de médicos e pacientes na América Latina. Ex co-fundadora da plataforma Kickante, ela atuou na gestão de vendas do Groupon Brasil, passou pelas áreas de comunicação do Grupo CDI, da Casas Bahia e da DeDuo Comunicação. Neste bate-papo, ela fala do controverso mercado, cercado por grandes doses de desconhecimento e preconceito.
Viviane, fale um pouco da sua trajetória até o projeto Kickante.
Eu sou Relações Públicas e comecei a minha carreira na área de comunicação corporativa, sempre com foco no impacto social. Ainda como estagiária, me dei conta que havia uma predileção por criar processos novos – como foi o projeto de comunicação interna da Casas Bahia do qual participei: levamos quase 1 ano para ter uma pesquisa bem feita, resultados, revista e mural rodando. Quando o projeto ficou pronto, achei bastante frustrante seguir apenas alimentando aquilo que havia sido tão incrível criar. Ali já ficou evidente que eu era uma pessoa de inícios. Saí e empreendi, abri uma agência de comunicação e captação para projetos de incentivo fiscal. O ano era 2008 e o lucro real das empresas baixíssimo, quando não era zero. O negócio não deu certo e decidi voltar para o mercado. Fui convidada a assumir uma posição comercial no Groupon que havia apenas chegado ao Brasil, fui promovida em 3 meses, novamente em 6 meses, até que assumi as grandes contas de empresa. Ali ouvi pela primeira vez o termo startup e percebi que aquela era a dinâmica de trabalho que eu precisava. Saí de lá para co-fundar a Kickante e ajudar a crescer a empresa, foram 4 anos dedicados à empresa que veio a ser a plataforma de crowdfunding do país.
Como nasceu a ideia de criar uma empresa para atuar no mercado de Cannabis?
Sabíamos que havia uma demanda crescente por tratamentos com cannabis medicinal da parte de pacientes que convivem com dores ou doenças crônicas (aprox. 40% da população adulta brasileira) e que gostariam de se livrar de medicamentos tradicionais que possuem muitos efeitos colaterais, muitas vezes alta toxicidade e até potencial de letalidade, e ainda assim sem trazer o alívio esperado pelo paciente. Há casos mais graves como doenças raras e epilepsia refratária em que pacientes passam de dezenas de convulsões diárias para uma a cada 2 meses. Entendendo a necessidade desses pacientes, decidimos criar um negócio auxiliar para agregar valor ao médico (que recebe mais pacientes), ao paciente (que tem acesso facilitado ao tratamento) e aos fornecedores (que passam a ter um canal mais amplo de venda de seus produtos). A expectativa é, através de informação e conhecimento, tornar o acesso mais fácil e barato.
Maconha medicinal: qual a situação hoje, no país? O que pode, o que não pode?
Hoje um paciente insatisfeito com as opções disponíveis de tratamento para seu caso pode receber autorização da Anvisa para se tratar com CBD e THC. A Anvisa vem autorizando o tratamento sem restrição sobre especialidade médica ou patologia, portanto, o acesso legal é bastante amplo.
O que não pode, de fato, é haver estoque de produtos à base de cannabis ou cânhamo (hemp) no Brasil, o que encarece o tratamento, visto que cada paciente precisa arcar com seu frete sozinho. Há alguns fatores que vêm limitando o acesso à cannabis medicinal: falta de informação para o médicos, acesso e consulta a diferentes produtos, burocracia de aprovação da Anvisa e como encontrar um médico prescritor. É sobre todos estes pontos que a Dr. Cannabis atua facilitando o acesso à cannabis medicinal legal, sem custo para o médico ou para o paciente.
Como funciona esta ponte que vc faz entre médicos, pacientes e fornecedores de produtos a base de cannabis?
Aplicamos os conceitos de usabilidade digital aos passos, até então, burocráticos do tratamento com cannabis medicinal: oferecemos aos pacientes médicos com base em sua geolocalização e patologia; levamos aos médicos mais pacientes interessados em sua experiência no tratamento com cannabis; intermediamos a emissão dos documentos de acordo com os critérios Anvisa, bem como, a sua autorização junto ao órgão; enviamos ao paciente cotação, frete e todos os detalhes para a importação; entregamos o paciente ao parceiro pronto para importar e começar o seu tratamento. Note que a Dr Cannabis é o que se chama no meio de negócio auxiliar (ancillary business), ou seja, não temos medicamentos próprios, não produzimos e não queremos tocar a planta, mas sim atuar como um facilitador (despachante) no processo de tratamento com cannabis medicinal legal.
Qual a sua visão a respeito do mercado criado hoje em torno da Cannabis?
As evidências do uso terapêutico da cannabis remontam a milhares de anos, porém há menos de 100 anos houve uma campanha de publicidade negativa do mercado têxtil sobre o cânhamo (de onde se extrai uma fibra muito mais resistente e versátil do que o algodão, por exemplo) que se ampliou para a planta e todos os seus derivados. De lá pra cá, muito estigma e informação duvidosa foram criados, campanhas contrárias e abriu-se espaço para o mercado ilegal, pois o consumo nunca deixou de existir.
Reconhecer ampla e publicamente os benefícios terapêuticos do CBD, do THC e da planta como um todo é recuperar anos de história e dar acesso a um tratamento muito seguro. Hoje sabemos que é praticamente impossível ter uma overdose de cannabis e, de fato, nunca houve um caso de morte por excesso da planta. As taxas de adicção são inferiores à do álcool e do tabaco, para não citar medicamentos vendidos todos os dias em farmácias e que levam milhares à morte todos os dias ao redor do mundo. Estamos hoje diante da abertura de um dos mercados mais reprimidos da história recente, afinal as pessoas nunca deixaram de usar cannabis. Ao tirar do mercado ilegal, oferecer produtos derivados elaborados com critérios de segurança, com controle de qualidade e apelos de design, amplia-se a oferta para os usuários e abre-se espaço para novos consumidores como idosos (pense em óleo de cannabis para dores), crianças (ex: comidas de bebê com proteína de cânhamo, bastante comuns nos EUA) e pets (que assim como humanos possuem um sistema endocanabinóide).
Claro que vivemos neste momento uma euforia de marcas e aplicações diversas, especialmente nos Estados Unidos, que não parecem muito longevas. Por exemplo, numa ação de marketing no último dia 20/4, a rede de restaurantes Carls Jr. vendeu hambúrgueres infusionados com CBD. A Kim Kardashian, detentora de redes sociais com milhões de seguidores, fez seu chá de bebê com o tema CBD. A tendência é que a cannabis como matéria prima seja normalizada e, cada vez mais, vejamos produtos derivados de uma planta extremamente versátil e com muitos benefícios. Pense em produtos como bio plástico, concreto de hemp, tecidos, alimentos, medicamentos e muitos outros por criar.
Por que há tantas contradições neste mercado? Pode vender, mas não pode vender online. Pode fumar, mas não pode portar, pode isso, mas não aquilo. Este cenário pode mudar?
Este cenário está mudando com informação, é a falta dela que leva a decisões errôneas que muitas vezes pioram os problemas econômicos, de saúde e segurança diretamente influenciados pelo comércio de cannabis.
Há muita gente séria trabalhando, ou há muito charlatanismo?
A falta de regulação abre espaço para alegações falsas. Um chocolate vendido hoje nos EUA pode alegar ter CBD em sua formulação, porém, como o Governo Federal não criou regras de fiscalização e padrões para esse tipo de substância, o consumidor fica desprotegido e corre o risco de ser enganado. Vejo essa guerra de marcas mais forte nos estados americanos regulados. Claro que mesmo lá, há muita gente séria trabalhando. E, falando no impacto na saúde, os dados observados em consultório não mentem.
Em que lugares há, hoje, o trabalho mais sério sendo feito com cânhamo, ligado a curas medicinais?
Podemos dizer que os EUA vem cultivando cânhamo com foco no mercado há mais tempo. Com o Hemp Farm Bill assinado em 2018 nos EUA, o cânhamo passou a ser tratado como qualquer outra commodity agrícola no país, o que dá espaço para ampliar investimentos, pesquisas e desenvolvimento de produtos. É difícil dizer quem é mais ou menos sério, vejo sim atuações diferentes em torno da cannabis e alguns países já ignorando a distinção entre as subespécies. Israel está muito empenhada em pesquisa, desenvolvimento e propriedade intelectual. Canadá tem uma regulação que abre espaço para marcas, porém com um controle para garantir que o acesso seja apenas a adultos e dentro de critérios rígidos. Uruguai já possui a maior planta de extração de cannabis da América Latina e potencial para ser o hub distribuidor da região. Colômbia criou regras para a emissão de licenças de cultivo e se inseriu no mapa da cannabis mundial com força. A falta de regulação no Brasil faz com que sejamos vistos apenas como um potencial grande consumidor desses produtos. Temos, no entanto, potencial para cultivar, extrair, produzir, exportar e sermos parte desse mercado já bilionário e mundial.
E onde parece haver mais chalatanismo?
Sempre que não houver regulação haverá mercados paralelos vendendo produtos sem controle, com risco à saúde e fácil acesso a grupos que deveriam ser protegidos do uso, como crianças. Quanto menor a regulação, maior o charlatanismo, na minha opinião.
Qual a sua visão da comunicação feita em torno deste segmento, nos EUA e no Canadá, com tantas agências dedicadas exclusivamente ao branding da cannabis, ainda que haja muitas restrições no segmento?
É justamente a restrição que cria a necessidade de uma comunicação específica e cuidadosa. Fosse um produto comum, poderia ser atendido em qualquer agência – como hoje elas atendem com um mesmo time, por exemplo, uma marca de automóveis e uma rede de supermercados.
Quais as perspectivas no Brasil?
Pouco se discute sobre o tema no meio político neste momento. Por outro lado, o impacto mundial deste mercado não poderá ser ignorado. Os argumentos econômicos e de saúde são irrefutáveis. A dúvida não é mais SE as coisas vão mudar no Brasil em torno da cannabis, mas quando mudarão.
Nosso papel na Dr. Cannabis é de reunir e ampliar o grupo de pessoas diretamente beneficiadas, coletar informações e embasar uma decisão político-regulatória com fatos.
Qual o tamanho deste segmento no Uruguai, por exemplo, o mercado mais próximo a nós onde as coisas seguem mais livres?
O Uruguai não tem um mercado interno relevante, sua população é equivalente à de Campinas, SP. Porém o fato de terem sido pioneiros na regulação os colocou à frente neste mercado e hoje já possuem a maior planta de extração de cannabis da América Latina. A empresa em questão, ICC Labs, foi adquirida ano passado por US$ 290 milhões pela Aurora, canadense e uma das líderes mundiais de cannabis. O país explora seu potencial de exportação e benefícios fiscais como uma zona franca anexa ao aeroporto de Montevideo e um órgão público exclusivo para o tema cannabis (IRCCA – Instituto de regulação e controle de cannabis) que entende do assunto.
Por que você decidiu empreender no Brasil e não em algum país onde as coisas parecem mais possíveis?
Alguns fatos foram determinantes: alguém de fora teria muito mais dificuldade do que uma brasileira para entender a nossa complexa legislação, regulação e achar um caminho legal para atuar no Brasil; sou brasileira, faço a minha parte para que o nosso país possa colher internamente os benefícios da abertura desse novo mercado e não ser apenas um mercado consumidor; finalmente, são muitos pacientes precisando de tratamento que até então estavam desassistidos ou nem sabiam que cannabis medicinal legal era uma possibilidade. A Dr. Cannabis tem investidores sim e precisa trazer resultados, mas temos métricas de impacto social muito claras que são levadas em consideração em todos os passos da empresa.
Que marcas ou projetos você citaria como interessantes em andamento no segmento em que você atua, no Brasil, ou liderados por brasileiros no exterior?
No Brasil temos a Entourage, do Caio Abreu, explorando as possibilidades de um medicamento nacional com um processo de extração exclusivo. Nos EUA, admiro muito o trabalho da Keila Santos, que vai comemorar 5 anos da marca Revivid, que não só tem produtos próprios, como vende concentrados de CBD para diversas marcas em todo o mundo e domina toda a cadeia produtiva, desde o cultivo.